Descoberto o ancestral selvagem do urucum
22 de janeiro de 2016
Peter Moon |
Agência FAPESP – O urucum é
um pigmento vermelho intenso de uso milenar entre os índios amazônicos.
Adotado pelos colonizadores europeus como um substituto do açafrão, o
urucum é hoje muito comum na culinária brasileira, onde é conhecido como
colorau. Segundo dados do IBGE, a produção brasileira em 2012 foi de
12.000 toneladas/ano. Desse total, 60% são destinados à fabricação de
colorau, 30% à fabricação de corantes e 10% à exportação – para uso na
indústria de cosméticos.
Apesar da sua importância econômica, culinária, cultural e histórica,
ainda não se conhecia a origem da sua domesticação. Até hoje não se
havia identificado quem seria o ancestral selvagem do urucuzeiro (
Bixa orellana),
o arbusto domesticado de onde se extrai o urucum. Não mais.
Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) conseguiram
identificar a misteriosa espécie que deu origem ao urucum. Trata-se de
um arbusto chamado
Bixa urucurana.
O trabalho também identificou a região da domesticação original do
urucum como sendo o norte da América do Sul (provavelmente Pará ou
Rondônia) – e não o Caribe, onde foram encontrados os vestígios
paleobotânicos mais antigos do urucum. O
artigo com a identificação do urucum selvagem foi publicado no periódico Economic Botany.
O trabalho, que teve
Elizabeth Ann Veasey, da Esalq, como pesquisador responsável, é
apoiado pela Fapesp.
De acordo com a bióloga Priscila Ambrósio Moreira, do Inpa, muitas
plantas que ocorrem nas áreas de moradia e uso humano na Amazônia são
consideradas domesticadas porque se modificaram tanto do ancestral
silvestre que se tornaram dependentes da ação humana para se propagar.
“Este é o caso do urucum. Não encontramos urucum com produção abundante
de pigmento vermelho ou alaranjado em qualquer lugar. Ele está sempre
associado a áreas manejadas pelos humanos.” Mas qual seria a origem da
planta?
Em 1946, o botânico e entomólogo italiano Adolpho Ducke (1876–1959)
levantou a hipótese de que o urucum que conhecemos fosse originário de
uma grande árvore que cresce no sudoeste da Amazônia, explica Priscila.
Como Ducke chegou a essa hipótese? “Ao coletar plantas pela Amazônia,
ele deve ter ouvido dos moradores locais da existência de um urucum do
mato, a
Bixa excelsa, uma grande árvore cujo fruto é parecido com o do urucum de quintal.”
A suspeita de Ducke foi descartada quando os pesquisadores ponderaram
que apenas a coleta de sementes na floresta e o plantio nos quintais
dificilmente transformaria uma árvore de 30 metros de altura num arbusto
de 2 a 3 metros como se encontra nos quintais.
Ecologia do urucum
Mas será que existiriam outros tipos de urucum do mato na Amazônia?
“Nossa hipótese para identificar o ancestral do urucum foi uma soma de
evidências, tanto da botânica quanto do conhecimento de famílias
ribeirinhas sobre a ecologia do urucum”, explica a botânica.
Uma evidência para ajudar na identificação veio de relatos da
população ribeirinha no Pará sobre a existência de um urucum do mato que
aparecia espontaneamente no quintal e que conseguia cruzar com o
cultivado. “Mais importante”, diz Priscila Moreira, “os relatos davam
conta de que, após o cruzamento, a geração seguinte do urucum cultivado
ficaria mais parecida com o tipo silvestre. Ou seja, produzia menos
pigmento nas sementes, que é a principal parte da planta usada pelo
homem. Isso mostra que essas duas espécies conseguem cruzar, mas há uma
prevalência do tipo silvestre.”
Ao pesquisar na literatura, acabou-se chegando ao trabalho do
botânico, naturalista e viajante alemão Carl Ernst Otto Kuntze
(1843–1907), que descreveu em 1891 a espécie B. orellana. Há mais de 120
anos, Kuntze já observava que uma outra planta, a
B. urucurana, deveria ser da mesma espécie que o urucum cultivado.
Bixa urucurana é um urucum do mato, mas não uma grande árvore e
sim um arbusto, como o urucum dos quintais. “A única espécie descrita
de urucum arbustivo é a
B. urucurana”, diz Priscila Moreira.
Esse urucum selvagem cresce sempre associado a cursos d’água em áreas
abertas. Forma manchas com vários pés. “Encontramos uma mancha com
cerca de 70 pés na beira do rio e vários outros espalhados ao longo do
barranco na margem desse rio.” O urucum selvagem tem frutos menores,
mais arredondados, com pouco pigmento. Segundo Priscila Moreira, “a
espécie selvagem quase não produz pigmento. Já a domesticada tem uma
produção abundante. Suas sementes são colhidas em frutos maduros e
colocadas para secar. As sementes são cobertas por uma capa oleosa
avermelhada, que é o pigmento”.
Existe uma curiosidade que difere as duas espécies de urucum, ela
observa. Enquanto o urucum cultivado abre o fruto sozinho quando está
maduro, expondo suas sementes, no silvestre os frutos se mantêm
fechados. “Se
Bixa urucurana realmente é o ancestral silvestre do
domesticado, estamos observando uma mudança na capacidade de dispersão
das sementes que foge à regra. Geralmente, a domesticação promove a
perda da dispersão espontânea das sementes. Com o milho foi assim. No
urucum, parece ser ao contrário. Quando domesticado, o fruto passou a
abrir espontaneamente. Mais produção de sementes e mais pigmento podem
ter indiretamente promovido uma pressão para abertura do fruto quando
maduro.”
Geografia da domesticação
Um outro dividendo importante da pesquisa foi conseguir apontar o
local provável onde aconteceu a domesticação do urucum. Dados
arqueológicos revelam que o urucum era usado entre os índios do vale do
Peruaçu, em Minas Gerais, entre 500 e 1.000 anos atrás. Sementes
carbonizadas com até 1.300 anos foram escavadas na Colômbia. Estudos
linguísticos demonstram que o nome pré-maia do urucum já era usado na
América Central há 2.400 anos. Indícios do pigmento foram encontrados em
assentamentos pré-históricos no centro do Peru que datam de 3 mil anos.
Mas os indícios mais antigos do uso do urucum vêm de um sítio
arqueológico ocupado há 3.600 anos na pequena ilha Saba, uma colônia
holandesa nas Antilhas, no mar do Caribe.
Apesar de tantos indícios, após a descoberta do urucum selvagem tudo
leva a crer que o urucum de quintal foi domesticado no norte da América
do Sul. A explicação é simples. O urucum selvagem
B. urucurana
não ocorre em nenhum outro local da América do Sul, muito menos na
América Central ou no Caribe. “Pode ser que exista B. urucurana no
Caribe, mas até hoje não foi registrado nos herbários. Se houver, pode
ser que sejam poucos indivíduos que conseguiram se dispersar até lá. Já
na Amazônia, registramos a ocorrência e, além disso, adensamentos da
planta, mostrando que é uma área central da distribuição da planta”,
argumenta Priscila Moreira.
“Da mesma forma, embora no Caribe os registros paleobotânicos do
urucum datem de cerca de 3.600 anos atrás, a ausência na Amazônia não
descarta a possibilidade de que, em breve, arqueólogos na região
encontrem sementes de urucum tão ou mais antigas que as do Caribe”, diz a
bióloga.
Variações da espécie
Para que a área de domesticação do urucum seja encontrada, é preciso
aguardar os resultados dos estudos genéticos que irão comprovar se o
urucum selvagem e o doméstico são, de fato, variações de uma mesma
espécie. Tal estudo está a cargo do biólogo Gabriel Dequigiovanni,
coautor deste trabalho e doutorando na Esalq, em Piracicaba (SP). A
pesquisa é
apoiada pela FAPESP.
Segundo a orientadora de Dequigiovanni, Elizabeth Ann Veasey, do
Departamento de Genética da Esalq, já foi feito o trabalho com
marcadores microssatélites de populações selvagens (
B. urucurana) e domesticadas (
B. orellana)
do urucum. “As duas espécies se separam, mas não totalmente. Deve haver
fluxo genético entre elas”, diz Elizabeth. “Nossa hipótese é que se
trata de variedades diferentes de urucum.”
Para bater o martelo, o próximo passo é o sequenciamento genético de
regiões do DNA do cloroplasto, a organela das células vegetais onde se
processa a fotossíntese. “Dequigiovanni reuniu uma boa quantidade de
amostras cultivadas e selvagens de urucum. Também coletou em herbários
amostras de várias espécies do gênero Bixa e de outras espécies da mesma
família. Agora vamos compará-las para obter uma resposta mais
concreta.” Elizabeth acredita que os resultados do trabalho surjam a
partir de meados de 2016. Mas a pesquisa já forneceu um dividendo: “É
difícil saber qual foi o centro de evolução do urucum, mas já sabemos
onde ele foi domesticado. O centro de domesticação da espécie
encontra-se no sudoeste da Amazônia”, revela Elizabeth. É muito, mas
muito distante do Caribe.
O trabalho de identificação da origem do urucum é coordenado por
Charles Clement, do Inpa, em Manaus. Seu laboratório tem buscado
identificar e localizar ancestrais silvestres de plantas úteis aos
humanos na Amazônia, como cuia de tacacá, biribá, mandioca, umari,
cacau, castanha do Brasil e pequiá. “Isso é importante para ajudar a
contar a história da Amazônia a partir do uso de suas plantas desde pelo
menos 8.000 anos atrás”, argumenta Priscila. “A pesquisa também auxilia
na localização de áreas de patrimônio histórico na Amazônia e de
práticas humanas, de ribeirinhos e indígenas, que devem ser
preservadas.”
O artigo T
he Domestication of Annatto (Bixa orellana) from Bixa urucurana in Amazonia,
de Priscila Moreira, Juliana Lins, Gabriel Dequigiovanni, Elizabeth
Veasey e Charles Clement, publicado em Economic Botany, pode ser lido
em:
http://link.springer.com/article/10.1007%2Fs12231-015-9304-0.