A origem do cerrado
Histórias evolutivas divergentes dão formas distintas às savanas atuais e afetam possíveis respostas a mudanças climáticas
MARIA GUIMARÃES |
Edição 219 - Maio de 2014
© CEZARY WOJTKOWSKI / TIPS / GLOW IMAGES
A fauna de grande porte, como estas manadas de zebras e gnus no Parque Nacional de Ngorongoro, na Tanzânia, reduz a campo parte da paisagem africana
Árvores pequenas e retorcidas, às vezes com
a casca dos troncos transformada em carvão pela passagem do fogo, em
meio a um tapete de capim. Quem já viu logo reconhece o cerrado, a
savana brasileira. Na África e na Austrália, os dois outros continentes
em que o bioma é característico, as savanas formam paisagens muito
parecidas. Mas a semelhança é superficial, já que o cerrado tem uma
biodiversidade maior a ponto de estar na lista de 34 áreas no mundo com maior riqueza de espécies, e sob ameaça de extinção – os hotspots.
A novidade é que as savanas dos três continentes também diferem em
como respondem ao fogo, à umidade e à temperatura, conforme um grupo
internacional, com a participação de brasileiros, mostrou em janeiro na
revista Science a partir de dados
compilados em mais de 100 estudos realizados em 2.154 áreas de savana
na América do Sul, na África e na Austrália.
Além da importância para
compreender o funcionamento desse ambiente, os achados são essenciais
para a
criação de modelos
que prevejam a reação das savanas às mudanças climáticas e estimem a sua
capacidade de amenizar essas alterações ao remover carbono do ar.
“Conseguimos ver um papel aparente da história evolutiva na
determinação da dinâmica contemporânea do bioma”, diz Caroline Lehmann,
da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Essa
visão mais
abrangente é para ela a conclusão mais empolgante do trabalho que
coordenou. As diferenças parecem acontecer porque a savana é
relativamente jovem: deve ter surgido entre 3 milhões e 8 milhões de
anos atrás. Nessa época, os continentes já estavam separados havia um
bom tempo e suas floras e faunas tinham acumulado diferenças marcantes.
As
espécies de árvores
presentes, com uma dominância de mirtáceas (família que inclui a
pitanga, a goiaba, a jabuticaba e o eucalipto) na Austrália e de
leguminosas na África, são distintas em fenologia – a periodicidade com
que produzem flores e frutos –,
resistência ao fogo, crescimento e arquitetura. Já o cerrado, a mais diversa das savanas, não tem uma família botânica predominante.
Um olhar mais atento sobre os
fatores ambientais
que regem esses ecossistemas revelou que eles estão por trás de
diferenças funcionais. Na África e na Austrália, as chuvas e a
temperatura têm um efeito forte em aumentar a frequência do fogo, já que
propiciam o crescimento de capins. Em menor intensidade, esses fatores
também afetam o tamanho das árvores. Na América do Sul essas relações
são muito fracas, tanto no Brasil como na Venezuela, onde também há
vegetação savânica. A variação de um continente para o outro surpreendeu
os pesquisadores, que esperavam uma homogeneidade maior. “Em
retrospecto, parece bastante óbvio quando se considera a diversidade na
arquitetura e na fenologia das árvores nessas regiões”, reflete
Caroline.
© THOMAS SCHOCH / WIKIMEDIA COMMONS
Com pouca água para agricultura, na Austrália as savanas são mais preservadas
O importante é que essa variação significa que não é possível usar um
único modelo para prever qual será, por exemplo, a biomassa de árvores
em determinadas
condições ambientais,
ou como a vegetação reagirá a mudanças na temperatura global. Uma
particularidade do cerrado é ter evoluído num ambiente mais úmido do que
as outras savanas. “Nos outros continentes, sob o mesmo clima em que
aqui há cerrado, já haveria floresta”, exemplifica a engenheira
florestal Giselda Durigan, do Instituto Florestal do Estado de
São Paulo em Assis, interior paulista, coautora do estudo.
As particularidades da África também se devem à grande variedade
de herbívoros de tamanho avantajado – como elefantes, antílopes ou
zebras, com suas manadas populosas – cuja voracidade vegetariana impede a
sobrevivência das mudas de árvores
e torna muito mais comum o campo dominado por capins.
“A ausência da
megafauna na América do Sul é em grande parte responsável pela
diversidade do cerrado”, diz Giselda.
Sem os grandes herbívoros – aqui muitas vezes representados pelo gado
–, o que mantém aberta a fisionomia do cerrado é o fogo. Quando não há
queimadas, as árvores crescem, se multiplicam e inibem a germinação e o
desenvolvimento de espécies endêmicas, que não toleram a sombra. Sem
fogo e sem pastejo, o próprio capim pode prejudicar os brotos que
precisam de luz. Um exemplo de como a fauna e as queimadas são parte
integrante do ecossistema apareceu na pesquisa que Giselda vem
realizando na Estação Ecológica de Santa Bárbara, no interior paulista.
Ela encontrou uma
planta com menos de 10 centímetros de altura que descobriu ser um exemplar de
Galium humile,
da família do café, uma espécie que não era coletada no estado desde
1918. O curioso é que o achado se deu justamente numa área que nas
últimas décadas foi muito sujeita a incêndios e ao uso como pastagem. “A
flora e a fauna do cerrado dependem da passagem do fogo”, alerta
Giselda. “No Brasil vamos ter que aprender a usá-lo como ferramenta de
manejo, agora que a lei prevê a prática para o bem do ecossistema.”
Investigações como a do grupo de Giselda foram a base para o
artigo publicado na
Science, que reúne dados de muitos outros
grupos de pesquisa.
“É um tipo de estudo que ganha em abrangência, mas perde em detalhe”,
comenta Giselda. Ela foi convidada para a reunião na Austrália que
formou o grupo de trabalho em 2009, mas não pôde participar por
conflitos de agenda: estava naquele país no mesmo momento, mas em outro
evento. A única representante brasileira era, por isso, a engenheira
florestal Jeanine Felfili, da Universidade de Brasília (UnB). Mas logo
em seguida Jeanine não sobreviveu a um acidente vascular cerebral, e
parte de sua contribuição foi concretizada por Ricardo Haidar, à época
seu estudante de mestrado. Mesmo assim, em 2013 uma primeira versão do
artigo foi recusada pela revista por ter poucos dados sul-americanos.
Caroline então procurou Giselda, que nesse momento não só estava
disponível como acabara de participar de um extenso levantamento sobre o
cerrado e tinha todos os dados necessários na cabeça e no computador.
“Muitos dos dados estavam em artigos em português ou mesmo ainda em
teses”, conta a brasileira. Por isso, na prática eram invisíveis para os
estrangeiros.
De olho no futuro
Com a sua contribuição o estudo se tornou mais representativo, com
modelos estatísticos
mais robustos para estimar o efeito de cada uma das variáveis sobre a
biomassa da savana. Esses modelos também buscam prever o que pode
acontecer com o porte das savanas diante das mudanças previstas no clima
das próximas décadas. Ao considerar um aumento de quatro graus Celsius
(°C) na média anual de temperatura, o estudo mostrou diferenças
marcantes entre os modelos globais e regionais de alteração na biomassa
das savanas. Na África, por exemplo, o modelo que não distingue
continentes prevê uma leve redução na biomassa, enquanto o específico
indica que haverá um aumento. Para a América do Sul, o modelo regional
prevê, nesse cenário, uma redução de biomassa bem maior do que aquela
prevista pela simulação global.
“Os mapas de biomassa prevista derivados de nossos modelos
estatísticos são adequados para propósitos ilustrativos”, relativiza
Caroline. “Mas, na verdade, as pessoas exercem uma influência enorme nos
padrões atuais de biomassa por meio de desmatamento, agricultura,
pecuária e derrubada seletiva.” Ela imagina, por isso, que haja bastante
descompasso entre as previsões dos modelos e o que realmente acontece. E
destaca o cerrado, que tem passado por transformações muito mais
extensas do que as outras savanas, devido ao uso para a agropecuária, e
já perdeu quase metade de seu território.
Mas antecipar o que as mudanças ambientais causarão nas savanas ainda
é impossível, não só pela incerteza quanto ao que acontecerá no clima
de cada continente. O problema é especialmente complexo para esses
ecossistemas por sua enorme diversidade entre os continentes e dentro de
cada um deles. O estudo se concentrou nas savanas mais típicas, que têm
uma divisão mais ou menos equilibrada entre árvores e capins. Mas em
cada um dos continentes o bioma pode ser desde um capinzal até uma
floresta mais densa de árvores altas, com um estrato herbáceo esparso.
“O aumento nas concentrações de CO
2 atmosférico deve afetar
de forma diferente os capins tropicais e as árvores, mudando o
equilíbrio competitivo entre essas plantas centrais do sistema”, explica
Caroline. Os efeitos serão variáveis conforme a região. “Posso dizer
que nossa falta de compreensão de como os sistemas de savana podem
responder à mudança climática é uma falha de conhecimento crítica que
deveria ser levada a sério.” Para ela as savanas, que cobrem cerca de
20% da superfície terrestre do planeta, devem ser estudadas com tanto
afinco quanto a Amazônia e outras florestas tropicais.
Intrigada com a relação fraca entre as variações de temperatura e
chuva e a vegetação do cerrado, Giselda acredita que encontrará
respostas abaixo da superfície. As características físicas do solo têm
forte influência sobre a disponibilidade de água para as plantas, que
precisam dessas reservas para enfrentar os períodos de estiagem. “Quando
o solo é argiloso, uma seca de quatro meses é sentida pelas plantas
como se durasse apenas dois meses”, explica. Isso acontece porque a
argila consegue reter água em maior quantidade e por mais tempo do que a
areia. “Mas quando há argila demais a água fica retida de tal maneira
que as plantas não conseguem captar.” As condições ideais para o
desenvolvimento das plantas, portanto, envolvem um equilíbrio sutil dos
componentes do solo, que é mais variável de um ponto a outro do cerrado
do que nas outras savanas.
Os modelos produzidos no estudo da
Science para estudar a
relação entre fatores ambientais e a biomassa arbórea levaram em conta
os teores de carbono e de areia numa camada de 50 centímetros de
profundidade. O carbono serve como medida da matéria orgânica ou do
conteúdo em nutrientes do solo, e a areia como estimativa de sua
capacidade de retenção de água. Mas esses indicadores são insuficientes,
de acordo com Giselda, e foram escolhidos por estarem disponíveis sobre
as savanas de todo o planeta.
Ao dar indicações das variáveis ambientais importantes para as
savanas, o estudo aponta direções importantes para trabalhos futuros.
Giselda imagina o que seria necessário para se ter uma compreensão
melhor da complexa relação entre o solo, o clima e o cerrado: uma rede
de pesquisa
com grupos trabalhando em toda a extensão do bioma, cavando trincheiras
em várias profundidades para examinar o solo e relacionar suas
propriedades com o porte e outras características da vegetação.
Artigo científico
LEHMANN, C. E. R.
et al.
Savanna vegetation-fire-climate relationships differ among continents.
Science. v. 343, n. 6.170, p. 548-52. 31 jan. 2014.