segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Registros vivos do tempo

Novas espécies de invertebrados marinhos descobertas no litoral paulista ajudam a entender a evolução dos oceanos
MARCELLO GUIMARÃES SIMÕES / UNESP
Cada vez que precisa coletar os pequenos animais marinhos invertebrados usados em sua pesquisa, o paleontólogo Marcello Guimarães Simões sofre com as viagens ao mar. Assim que o Progresso, um pesqueiro de camarões adaptado para pesquisas, zarpa do cais de Ubatuba, no litoral norte paulista, começam os enjôos, que só cessam na volta a terra firme. Mas nem o mal-estar o faz desistir do seu objetivo: capturar pequenos invertebrados conhecidos como braquiópodes – semelhantes a moluscos encontrados nas praias, com os quais têm em comum apenas as conchas – que estão ajudando a compreender as alterações que o ambiente marinho sofreu nos últimos milhares de anos e, no futuro, devem permitir propor formas de recuperação para essas áreas.
 
Vencendo o mal-estar e muitas vezes o mar revolto, Simões e Adilson Fransozo, ambos do Instituto de Biociências (IB) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, conseguiram coletar entre 2001 e este ano cerca de 5 mil exemplares de uma das espécies menos estudadas de braquiópodes vivos, a Bouchardia rosea – tarefa da qual participou a equipe de Michal Kowalewski, do Instituto Politécnico da Virgínia, nos Estados Unidos.

Por serem morfologicamente muito semelhantes a representantes da mesma linhagem que viveram há 60 milhões de anos, as Bouchardia são consideradas fósseis vivos. Com duas conchas quase simétricas e articuladas, semelhantes àquelas que viram brinquedo nas mãos das crianças nas praias, esses invertebrados são uma espécie de janela aberta simultaneamente para o passado e para o futuro, pois estão ajudando a reconstituir, com detalhes, o ambiente marinho em eras remotas e a desenvolver a paleoecologia marinha aplicada, ciência voltada para avaliar a deterioração ambiental e impedir seu progresso.

Desde o início dos trabalhos com os braquiópodes coletados no litoral paulista, a equipe da Unesp, coordenada por Simões, derrubou alguns dogmas. Os resultados mais recentes, publicados em julho na revista Palaios, uma das mais importantes da área, e apresentados em outubro no encontro anual da Sociedade Geológica dos Estados Unidos, em Denver, mostraram que a atual fauna de braquiópodes articulados da plataforma continental brasileira é mais diversificada do que se imaginava. Além de Bouchardia rosea, invertebrado tipicamente brasileiro e o único braquiópode articulado até então conhecido, os pesquisadores encontraram representantes de Platidia anomioides, Terebratulina sp e Argyrotheca cuneata, espécies que apresentam afinidades com as da Antártica, do Caribe, do Mediterrâneo e da porção sul-africana dos oceanos Atlântico e Índico.

Essa diversidade lança algumas questões sobre a distribuição dos braquiópodes pelo planeta. Duas perguntas que os pesquisadores pretendem responder, tão logo quanto possível, são por que a Bouchardia rosea só existe no Brasil e como as outras espécies chegaram até aqui. Já sabem que parentes remotos de Bouchardia rosea – como a B. conspicua, a B. antarctica e a B. transplatina – possuem uma longa história geológica: algumas habitaram os oceanos há cerca de 60 milhões de anos, após a extinção dos dinossauros. Atualmente, fósseis de espécies de Bouchardia e outras formas aparentadas, como Bouchardiella , podem ser encontrados em rochas da Antártica, da Austrália, da Argentina e do Uruguai.

Com cerca de 15 milímetros de comprimento e revestido por conchas róseas de carbonato de cálcio, às vezes com minúsculas listras brancas, a B. rosea é a única espécie viva conhecida da família Bouchardiidae que ainda habita os mares, espalhando-se pelo litoral dos estados de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Até o momento, os pesquisadores não sabem exatamente quando a espécie surgiu.

“Por motivos ainda pouco entendidos, enquanto as populações de Bouchardia rosea apresentam uma distribuição mais ao norte, ao longo da margem oriental da América do Sul, outras espécies fósseis do mesmo gênero têm uma distribuição mais ampla nos continentes do Hemisfério Sul e são encontradas na Austrália, na Antártica e, no continente sul-americano, na Argentina e no Uruguai”, ressalta Simões. “Outros estudos sugerem que a distribuição das espécies decorra das modificações nas correntes oceânicas ocorridas nos últimos milhões de anos, durante a evolução do Atlântico.”
Outra novidade é a profundidade em que podem ser encontradas as populações de Bouchardia, às vezes com milhares de indivíduos em apenas 1 metro quadrado. Falava-se que viviam em águas rasas, com cerca de 20 metros de profundidade, com raras ocorrências em águas com profundidade superior a 100 metros, mas as pesquisas do grupo da Unesp e as amostras coletadas pelo Programa de Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (Revizee) demonstraram que esses organismos podem viver a até 550 metros. A descoberta amplia o alcance de futuros estudos, ao mostrar que uma espécie antes encontrada apenas em águas rasas pode ocupar hábitats mais profundos e pouco estudados.

Pode haver também algumas correções de rota nas pesquisas. Com base nos escassos dados sobre a biologia de Bouchardia rosea, os especialistas interpretavam o modo de vida das espécies fósseis do gênero como sendo similares à de Bouchardia rosea . Dessa forma, viram muitas ocorrências fósseis como geradas em condições deposicionais de águas rasas, já que, até então, a distribuição da espécie vivente estava, em grande parte, restrita às águas rasas. “Como agora sabemos que a espécie ocupa fundos a profundidades em torno dos 500 metros, seria interessante reexaminar as ocorrências fósseis à luz dos novos dados e comparar com os advindos de outras ciências, como a estratigrafia, que estuda a origem e a composição das camadas de rochas”, comenta o pesquisador da Unesp.

Os estudos de Simões sugerem também que as correntes oceânicas de ressurgência (de águas muito frias) podem ser fundamentais para o desenvolvimento de populações de braquiópodes. 

Mais uma vez, as evidências caminham na contramão do que se sabia: imaginava-se que essas correntes, ricas em nutrientes, trariam prejuízos para esses invertebrados, já que poderiam entupir o aparelho filtrador, chamado lofóforo, que drena a água e seleciona a matéria nutritiva. Por fim, verificou-se ainda a preferência dos braquiópodes por determinados tipos de substratos – as Bouchardia crescem em áreas do fundo oceânico em que a concentração de carbonato de cálcio nos sedimentos varia de 40% a 70%.

As constatações sobre as correntes e o substrato em que crescem mais facilmente são pistas importantes para o mapeamento global dessas populações, indicando de maneira mais clara onde podem se manifestar e as áreas que podem ajudar a recuperar. “As conchas oferecem registros confiáveis sobre a história recente e as modificações ambientais e biológicas vividas por aquela região da plataforma brasileira”, reafirma Kowalewski. “A partir de dados do passado, conseguimos informações sobre os estragos causados pela ação humana na natureza, redirecionando a atuação de ecologistas, geólogos, paleontólogos, biólogos e de agências ambientais.”

Kowalewski cita como exemplo um trabalho da Universidade do Arizona, também nos Estados Unidos, que, em meados da década de 90, em colaboração com a equipe de Virgínia, jogou luzes sobre o potencial da chamada paleoecologia marinha aplicada, uma área de pesquisa em que fósseis vivos como os braquiópodes e os registros de épocas passadas têm servido como referência para projetos de recuperação de áreas degradadas. Com esse tipo de informação, por exemplo, já foi possível desenvolver um plano de recuperação da biodiversidade aquática do delta do Rio Colorado, próximo à fronteira dos Estados Unidos com o México, área que sofreu intensa transformação ambiental com a construção de hidrelétricas.

As barragens erguidas desde 1930 reduziram bastante a quantidade de água que chegava à foz do Rio Colorado. Em consequência, houve um aumento da salinidade, o que colocou em risco de extinção espécies de invertebrados como a Mulinia coloradoensis, um molusco que servia de alimento para pequenos peixes, pássaros e para a população local. Para complicar, havia poucos registros históricos dos parâmetros ambientais do delta do rio, no período anterior às barragens.

Foi nesse ponto que a paleoecologia entrou em ação. Os pesquisadores coletaram amostras de conchas dos invertebrados ameaçados, que formam densas acumulações (depósitos superficiais) ao longo do delta. Depois, em laboratório, determinaram a idade dessas conchas, que variavam de recentes a até 7,3 mil anos. Esse dado é essencial porque, como os animais secretam o carbonato de cálcio e formam as conchas em equilíbrio químico com a água do mar, permite aos pesquisadores acessar as informações geoquímicas de conchas formadas em épocas distintas.

Essa análise revela, por exemplo, como as condições ambientais – temperatura e salinidade, entre outras – variaram de centenas a milhares de anos atrás. Ficou claro, assim, qual deveria ser a quantidade de água a ser descarregada no delta, a fim de manter as condições adequadas para a sobrevivência da Mulinia.

A equipe da Unesp procura seguir caminho similar. Embora embrionárias, as pesquisas são tão ambiciosas quanto os trabalhos feitos pelos norte-americanos. “A paleoecologia marinha aplicada é uma área de enorme relevância social que só recentemente passou a receber a atenção merecida”, afirma Simões. “O estudo do Rio Colorado é um marco.” Seu laboratório guarda amostras de acúmulos de conchas de Bouchardia rosea mortas e moluscos bivalves encontradas em acumulações com milhares de exemplares. Foram coletadas em 46 estações marítimas, com até 45 metros de profundidade, localizadas a cerca de 40 quilômetros da costa de Ubatuba, Caraguatatuba e São Sebastião, aonde chegavam somente após quatro horas de viagem de barco.

De volta ao laboratório, os pesquisadores analisaram as conchas do ponto de vista de uma área da ciência que estuda os padrões de preservação dos restos orgânicos, como os graus de articulação das conchas e de fragmentação, alterações na cor ou as taxas de incrustação ocorridas durante a vida ou adquiridas após a morte desses invertebrados – a chamada tafonomia. Conseguiram assim descobrir como se formaram esses acúmulos e a procedência das conchas depositadas no fundo do mar. Depois, as conchas seguiram para a equipe da Universidade de Virgínia, que conferiu as características tafonômicas básicas.

De lá, foram enviadas para o Woods Hole Oceanographic Institution’s National Ocean Sciences Accelerator Mass Spectrometry Facility (Nosams) e datadas com a técnica de carbono 14, mais indicado para datações de materiais com até 70 mil anos. Outra remessa foi de Virgínia para a Universidade George Washington, onde os pesquisadores cuidaram das datações com aminoácidos, que funcionam como relógios biológicos e indicam o tempo transcorrido desde a morte do organismo. “Embora possua limitações, a datação por aminoácidos é um método mais barato e mais rápido que o do carbono 14”, comenta Simões. Conclusão: as idades das conchas de Bouchardia encontradas na costa norte de São Paulo variaram de zero (o organismo tinha acabado de morrer) a 20 mil anos, com predomínio absoluto das que têm até 500 anos.

“Surpreendentemente, é possível estabelecer séries completas de idades a cada 50 anos, até a faixa em torno dos 500 anos, e determinar como os padrões ambientais variavam”, diz o pesquisador.
Na próxima etapa do trabalho, as equipes da Unesp e de Virgínia pretendem investir no estudo geoquímico das conchas já datadas, dentro das séries de idades até 500 anos ou mais – e os segredos que guardam deverão ser revelados pela análise de isótopos estáveis. Os especialistas vão comparar as proporções entre os elementos químicos – como carbono 13 e 12 e oxigênio 18 e 16 – das águas oceânicas com os registrados pelas conchas de Bouchardia de diferentes épocas (atuais, com 500, 3 mil e 20 mil anos, por exemplo).

O objetivo é construir uma linha histórica de parâmetros ambientais, como salinidade e temperatura. Simões sabe que nesse caminho não haverá apenas tempestades e enjôos. “Se estivéssemos falando de uma nova espécie de dinossauro, o tema seria rapidamente reconhecido”, afirma. “No caso de conchas tão pequenas, o processo é mais lento.”

O Projeto
Tafonomia de Braquiópodes e Bivalves em Ambientes Siliciclásticos da Costa Norte do Estado de São Paulo: Variação Ambiental nas Assinaturas Tafonômicas, Estilo Bioestratinômico e Mistura Temporal entre Tafocenoses

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