Estudo feito na USP mostra como o vírus oropouche se replica na célula humana
22 de agosto de 2018
Karina Toledo | Agência FAPESP – A estratégia
usada pelo vírus oropouche para se replicar dentro de células humanas
foi descrita pela primeira vez por pesquisadores da Universidade de São
Paulo (USP) e colaboradores em artigo publicado na revista PLOS Pathogens.
Resultados descritos na revista PLOS Pathogens indicam potenciais alvos a serem explorados na tentativa de barrar a infecção (imagem:
célula HeLa colorida para o vírus Oropouche [verde] e para as proteínas
TGN46 e giantina [vermelho e azul], 18 horas após a infecção / PLOS Pathogens / FMRP-USP)
Como mostra o estudo, logo após invadir a célula, o patógeno
“sequestra” a organela conhecida como complexo de Golgi, que se
transforma em uma verdadeira fábrica de vírus. Para isso, o oropouche
recruta complexos proteicos da célula hospedeira chamados ESCRT
(pronuncia-se “escort”), que têm a capacidade de deformar a membrana da
organela, permitindo a entrada do genoma viral.
“Essa forma de sequestro do complexo de Golgi, por meio do uso de
proteínas ESCRT, nunca havia sido demonstrado para nenhum outro vírus. É
uma descoberta que aponta novos alvos a serem explorados na tentativa
de barrar a infecção”, disse Natalia Barbosa, doutoranda na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) com Bolsa da FAPESP e primeira autora do artigo.
O trabalho também contou com Auxílio à Pesquisa da FAPESP e orientação de Luis Lamberti Pinto da Silva, professor na FMRP-USP. Colaboraram cientistas do Hospital Universitário de Tübingen, na Alemanha.
De acordo com Silva, muito pouco é conhecido sobre os mecanismos de replicação dos vírus da família Peribunyaviridae, à qual pertence o oropouche.
“São patógenos importantes do ponto de vista da saúde pública. No
Brasil, apenas o oropouche causa doenças, mas em outras regiões do mundo
também são endêmicos o vírus da encefalite de La Crosse e o
Crimeia-Congo, causador de febre hemorrágica. Há também membros dessa
família que causam doenças em gado”, disse à Agência FAPESP.
No caso do oropouche, os sintomas são parecidos com os da dengue:
dores nas articulações, na cabeça e atrás dos olhos, além de febre
aguda. A diferença é que em cerca de metade dos casos ocorre uma
recidiva da doença após a melhora dos sintomas.
O vírus é transmitido por um mosquito de hábitos urbanos, o Culicoides paraenses,
popularmente conhecido como borrachudo ou maruim. Estima-se em mais de
meio milhão os casos de infecção por oropouche em surtos ocorridos em
vilarejos e cidades da Amazônia, mas ele tem aparecido também em outras
regiões do país, sendo considerado por especialistas um vírus emergente.
“Certamente essa doença é subnotificada, sendo muitas vezes
confundida com outras arboviroses. É considerada de baixa gravidade, mas
o preocupante é que ainda não sabemos quais as possíveis consequências
da infecção para o sistema nervoso no longo prazo”, disse Silva.
Em experimentos in vitro, o grupo da FMRP-USP observou que o
vírus é capaz de infectar neurônios de camundongos e hamsters. Agora
tentam reproduzir o experimento com células nervosas humanas. O trabalho
é coordenado por Eurico Arruda, membro do Centro de Pesquisa em
Virologia da FMRP e coautor do artigo.
“Aparentemente, o oropouche é capaz de infectar diversos tipos
celulares, ou seja, consegue interagir com diferentes receptores
encontrados na superfície das células humanas. Mas ainda não conhecemos
quais são os receptores usados por nenhum membro da família Peribunyaviridae”, disse Silva.
Metodologia
Para desvendar os mecanismos de replicação do oropouche, os pesquisadores fizeram experimentos in vitro
com uma linhagem de células HeLa, a mais antiga e a mais usada em
laboratórios, derivadas de células de um tumor de colo de útero humano.
“Assim que as células são infectadas, o vírus começa a produzir
proteínas que atraem os complexos ESCRT da hospedeira para a membrana
externa do complexo de Golgi. Essas proteínas ESCRT então pressionam a
membrana da organela em direção ao interior e levam consigo o genoma
viral. Desse modo o vírus brota para dentro do complexo. O mais provável
é que, após algum tempo, essa organela modificada e cheia de vírus
acabe se fundindo com a membrana plasmática e liberando os patógenos
para o meio extracelular”, disse Silva.
Era sabido que outros vírus são capazes de recrutar a maquinaria
ESCRT para se replicar, entre eles o HIV. O patógeno causador da Aids
usa essas proteínas para atravessar a membrana plasmática, que separa o
meio intracelular do meio extracelular. “Mas esse mecanismo nunca havia
sido descrito para a invasão do complexo de Golgi por vírus”, disse
Silva.
Constituída por dobras de membranas e vesículas, essa organela tem
como função primordial o processamento, armazenamento e distribuição de
proteínas produzidas nos ribossomos.
“Não sabemos ao certo qual é a consequência do sequestro do complexo
de Golgi para a célula hospedeira. Mas cerca de 36 horas após serem
infectadas as células HeLa morrem”, disse o professor da FMRP.
Em estudo anterior, coordenado por Arruda, o grupo havia mostrado que
o oropouche é capaz de produzir uma proteína – chamada NSs – que induz a
célula hospedeira a entrar em um processo de morte programada conhecido
como apoptose.
“Essa não é uma proteína que faz parte da estrutura do vírus e não
sabemos qual é a vantagem para o patógeno em matar a célula hospedeira
por apoptose, mas pode ser resultado de um mecanismo de defesa. A
proteína NSs é isoladamente capaz de causar apoptose, e poderia vir a
ser explorada, por exemplo, para matar células tumorais”, disse Arruda.
Possíveis alvos
Em um dos ensaios descritos no artigo da PLOS Pathogens, os
pesquisadores manipularam células HeLa para elas não mais expressarem
uma importante proteína do complexo ESCRT: a Tsg101. Para isso, usaram
uma técnica conhecida como RNA de interferência, que consiste em inserir
na célula uma pequena molécula de RNA que impede a expressão do gene de
interesse.
“Essa intervenção tornou as células HeLa mais resistentes à infecção
pelo oropouche. Elas demoram mais para morrer e ficam com uma carga
viral bem mais baixa. Existem drogas experimentais que inibem a Tsg101 e
vamos agora testar contra o oropouche”, disse Silva.
Por se tratar de uma proteína importante para o funcionamento da
célula humana normal, ponderou Silva, talvez não seja possível usar no
tratamento de pacientes drogas inibidoras de Tsg101 ou de outros membros
do complexo ESCRT. O risco de efeitos adversos é alto.
“Mas é possível que exista uma molécula capaz de inibir a interação
do vírus com a proteína humana sem barrar a atividade de Tsg101 na
célula. É algo que ainda precisa ser estudado”, disse.
Outro objetivo do grupo é investigar quais são as proteínas
produzidas pelo oropouche para recrutar o complexo ESCRT. “Elas também
seriam potenciais alvos a serem explorados para barrar a infecção”,
disse Silva à Agência FAPESP.
O artigo ESCRT machinery components are required for Orthobunyavirus particle production in Golgi compartments
(doi: https://doi.org/10.1371/journal.ppat.1007047), de Natalia S.
Barbosa, Leila R. Mendonça, Marcos V. S. Dias, Marjorie C. Pontelli,
Elaine Z. M. da Silva, Miria F. Criado, Mara E. da Silva-Januário,
Michael Schindler, Maria C. Jamur, Constance Oliver, Eurico Arruda e
Luis L. P. da Silva, pode ser lido em: http://journals.plos.org/plospathogens/article?id=10.1371/journal.ppat.1007047.
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