Trabalho de 72 pesquisadores de
oito países conclui que o povo de Lagoa Santa descende dos migrantes da
cultura Clóvis, da América do Norte. Fisionomia marcadamente africana
atribuída à Luzia estava incorreta (imagens: André Strauss e Caroline Wilkinson)
A nova face de Luzia e do povo de Lagoa Santa
08 de novembro de 2018
Peter Moon | Agência FAPESP – A história do
povoamento das Américas acaba de ganhar uma nova interpretação. O maior e
mais abrangente estudo já feito a partir de DNA fóssil, extraído dos
mais antigos restos humanos achados no continente, confirmou a
existência de um único contingente populacional ancestral de todas as
etnias ameríndias, passadas e presentes.
Há mais de 17 mil anos, os membros daquele contingente original
cruzaram o estreito de Bering, da Sibéria para o Alasca, para então
povoar o Novo Mundo. O DNA fóssil indica que os integrantes daquela
corrente migratória tinham afinidade com os povos da Sibéria e do norte
da China, ou seja, não possuíam DNA africano ou da Australásia, como
indicava a teoria tradicional.
Uma vez na América do Norte, é o que revela o novo estudo, os
descendentes daquela corrente migratória ancestral se diversificaram em
duas linhagens há cerca de 16 mil anos. Os membros de uma das linhagens
cruzaram o istmo do Panamá e povoaram a América do Sul em três levas
consecutivas e distintas.
A primeira dessas levas ocorreu entre 15 mil e 11 mil anos atrás e a
segunda se deu há no máximo 9 mil anos. Há registros do DNA fóssil de
ambas as migrações em todo o continente sul-americano. Uma terceira leva
é bem mais recente e de influência restrita, pois se deu há 4,2 mil
anos, e seus membros se fixaram nos Andes centrais.
O estudo foi publicado na revista Cell
por um grupo de 72 pesquisadores de oito países, pertencentes a
instituições como a Universidade de São Paulo (USP), a Harvard
University, nos Estados Unidos, e o Instituto Max Planck, na Alemanha.
Os resultados da pesquisa sugerem que, na linhagem de humanos a
executar o trajeto norte-sul entre 16 mil e 15 mil anos atrás, seus
membros pertenciam à chamada cultura Clóvis, o nome dado a um conjunto
de sítios arqueológicos que têm entre 13,5 mil e 11 mil anos, todos
situados no oeste dos Estados Unidos.
Clóvis é o nome da pequena cidade no Novo México onde foram
descobertas, nos anos 1930, as primeiras pontas de flecha de pedra
lascada cujo formato se tornou um identificador da cultura homônima. Na
América do Norte, a cultura Clóvis está associada à caça da megafauna
pleistocênica, como preguiças gigantes e mamutes.
Com o declínio e a extinção da megafauna, há 11 mil anos, aquela
cultura eventualmente desapareceu. Muito antes disso, entretanto, bandos
de caçadores-coletores, ao explorar novas áreas de caça cada vez mais
ao sul, eventualmente acabaram por ocupar a América Central, como
comprova o DNA fóssil de 9,4 mil anos de um humano de Belize analisado
no novo estudo.
Posteriormente, talvez em perseguição a manadas de mastodontes,
bandos de caçadores-coletores Clóvis cruzaram o istmo do Panamá para
invadir e se espalhar pela América do Sul, como evidenciam os registros
genéticos de enterramentos humanos no Brasil e no Chile agora revelados.
Tal evidência genética vem corroborar evidências arqueológicas
conhecidas, como o sítio Monte Verde, no sul do Chile, onde humanos
esquartejavam mastodontes há 14,8 mil anos.
Entre os diversos sítios Clóvis conhecidos, o único enterramento
humano associado às ferramentas da cultura fica no estado de Montana. Lá
foram achados os restos de um menino – apelidado de Anzick-1 – com
cerca de 12,6 mil anos. O DNA extraído de seus ossos está relacionado ao
DNA dos esqueletos do povo de Lagoa Santa, um grupo de humanos antigos
que habitou o Brasil central – mais especificamente as grutas no entorno
de Lagoa Santa (MG) – entre 10 mil e 9 mil anos atrás. Em outras
palavras, o povo de Lagoa Santa descende em parte dos migrantes da
cultura Clóvis da América do Norte.
"Do ponto de vista genético, o povo de Lagoa Santa descende dos primeiros ameríndios”, disse o arqueólogo André Menezes Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, que coordenou a parte brasileira do trabalho.
"Surpreendentemente, os membros daquela primeira linhagem de
sul-americanos não deixaram descendência identificável entre os povos
ameríndios atuais. Em torno de 9 mil anos atrás, seu DNA desapareceu
completamente das amostras fósseis. Foi substituído pelo DNA da primeira
leva migratória, anterior à cultura Clóvis, da qual descendem todos os
ameríndios vivos. Ainda não sabemos os motivos que levaram ao
desaparecimento do estoque genético do povo de Lagoa Santa", disse.
Uma possibilidade para o sumiço do DNA da segunda migração,
encontrado no DNA do povo de Lagoa Santa, é que tenha se diluído em meio
ao DNA dos ameríndios descendentes dos integrantes da primeira leva
populacional, tornando-se não identificável pelos métodos atuais da
pesquisa genética.
De acordo com a geneticista Tábita Hünemeier,
do Instituto de Biociências (IB) da USP, que participou da pesquisa,
"um dos principais resultados do trabalho foi a identificação do povo de
Luzia como sendo uma população geneticamente relacionada à cultura
Clóvis, o que desfaz a ideia dos dois componentes biológicos, da
possibilidade de ter havido duas migrações para as Américas, uma com
traços mais africanos e a outra com traços mais asiáticos”.
"O povo de Luzia seria resultado de uma leva populacional originária
da Beríngia", disse, referindo-se à ponte de terra hoje submersa que,
durante a era do gelo, quando o nível dos mares era muito mais baixo,
ligava a Sibéria ao Alasca.
"De 9 mil anos para cá, os dados moleculares sugerem que houve uma
substituição populacional na América do Sul. Os membros do povo de Luzia
desapareceram, sendo substituídos pelos ameríndios atuais, muito embora
ambos tenham tido uma origem comum, na Beríngia", disse Hünemeier.
Contribuição brasileira
O trabalho dos pesquisadores brasileiros contribuiu de forma
fundamental para o estudo. Entre 49 indivíduos dos quais se extraiu DNA
fóssil, sete esqueletos com idades entre 10,1 mil e 9,1 mil anos são
provenientes da Lapa do Santo, um abrigo rochoso em Lagoa Santa.
Aqueles sete esqueletos, ao lado de dezenas de outros, foram achados e
desenterrados em campanhas arqueológicas sucessivas no local, lideradas
primeiramente pelo antropólogo físico Walter Alves Neves, do IB-USP, e desde 2011 por Strauss. As campanhas arqueológicas movidas por Neves entre 2002 e 2008 foram financiadas pela FAPESP.
Ao todo, o novo estudo investigou o DNA fóssil de 49 indivíduos,
provenientes de 15 sítios arqueológicos situados na Argentina (2 sítios,
11 indivíduos com idades entre 8,9 mil e 6,6 mil anos), Belize (1
sítio, 3 indivíduos, idades entre 9,4 mil e 7,3 mil anos), Brasil (4
sítios, 15 indivíduos, idades entre 10,1 mil e 1 mil anos), Chile (3
sítios, 5 indivíduos, idades entre 11,1 mil e 540 anos) e Peru (7
sítios, 15 indivíduos, idades entre 10,1 mil e 730 anos).
Os esqueletos brasileiros são provenientes dos sítios arqueológicos
Lapa do Santo (7 indivíduos com cerca de 9,6 mil anos), do sambaqui
Jabuticabeira 2 (5 indivíduos com cerca de 2 mil anos), que fica em
Santa Catarina, e de dois sambaquis fluviais do Vale do Ribeira, no
estado de São Paulo: Laranjal (2 indivíduos com cerca de 6,7 mil anos) e
Moraes (1 indivíduo com cerca de 5,8 mil anos).
O arqueólogo Paulo Antônio Dantas de Blasis,
do MAE-USP, foi o responsável pelo trabalho arqueológico no sambaqui
Jabuticabeira 2, que também teve apoio da FAPESP por meio de um Projeto Temático.
As pesquisas nos sambaquis fluviais paulistas ficaram sob a responsabilidade do arqueólogo Levy Figuti, do MAE-USP, também com apoio da FAPESP.
“O esqueleto de Moraes (5,8 mil anos) e o de Laranjal (6,7 mil anos)
estão entre os mais antigos do Sul-Sudeste brasileiros. Eles apresentam
uma situação estrategicamente singular ao estar entre o planalto e a
costa, contribuindo significativamente para a compreensão do processo de
povoamento da região Sudeste do Brasil”, disse Figuti.
Esses esqueletos foram encontrados entre 2000 e 2005. Desde o início,
representavam uma questão complexa, com mistura de características
culturais interioranas e costeiras, e com análises sobre os esqueletos
geralmente com resultados variados, exceto em um esqueleto, que foi
diagnosticado como paleoíndio (ele ainda não teve sua análise de DNA
completada).
“O estudo agora publicado representa um grande avanço na pesquisa
arqueológica, aumentando exponencialmente o que sabíamos há poucos anos
sobre a arqueogenética do povoamento da América”, disse Figuti. Mais
recentemente, destaca-se a contribuição para a reconstrução da história
humana na América do Sul por meio da paleogenômica, realizada por
Hünemeier.
Genética ameríndia
Nem todos os restos humanos fósseis achados em alguns dos mais
antigos sítios arqueológicos das Américas Central e do Sul pertencem a
indivíduos geneticamente descendentes da cultura Clóvis. Há diversos
sítios cujos habitantes não tinham o DNA associado à Clóvis.
"Isso mostra que, além da contribuição genética, a segunda leva
migratória para a América do Sul, e que era relacionada à Clóvis,
possivelmente também trouxe consigo princípios tecnológicos que seriam
expressos nas famosas pontas rabo de peixe que são encontradas em grande
parte da América do Sul", disse Strauss.
Até agora não se sabia quantas correntes migratórias humanas
originárias da Ásia teriam adentrado as Américas no final da era do
gelo, há mais de 16 mil anos. A teoria tradicional, formulada nos anos
1980 por Walter Neves e outros pesquisadores, dava conta de que teria
havido uma primeira leva de humanos, cujos membros possuíam
características africanas ou semelhantes aos aborígenes da Austrália.
Foi de acordo com essa hipótese que se modelou a famosa reconstrução
facial de Luzia, nome dado ao crânio de uma mulher que viveu em Lagoa
Santa há 12.500 anos e, por isso, carinhosamente chamada de “a primeira
brasileira”.
O busto de Luzia com feições africanas foi composto a partir da
morfologia de seu crânio, em trabalho realizado pelo especialista
britânico Richard Neave, na década de 1990.
"Entretanto, a forma do crânio não é um marcador confiável de
ancestralidade ou de origem geográfica. A genética, por outro lado, é a
técnica que se presta por excelência a esse tipo de inferência", disse
Strauss.
"Os resultados genéticos do novo estudo mostram de forma categórica
que não existiu nenhuma conexão significativa entre as populações de
Lagoa Santa e grupos da África ou da Austrália. Portanto, a hipótese de
que o povo de Luzia representaria uma leva migratória anterior aos
ancestrais dos indígenas atuais não se confirma. Pelo contrário, o DNA
mostra que o povo de Luzia tem genética totalmente ameríndia”, disse.
Um novo busto substitui o de Luzia no panteão científico brasileiro.
Caroline Wilkinson, da Liverpool John Moores University, na Inglaterra,
especialista em reconstrução forense e discípula de Richard Neave,
realizou a reconstrução facial de um dos indivíduos desenterrados na
Lapa do Santo. O trabalho foi feito a partir do modelo digital
retrodeformado do crânio.
"Por mais acostumados que estejamos com a tradicional reconstrução
facial de Luzia, com traços fortemente africanos, essa nova reconstrução
facial reflete de forma muito mais precisa a fisionomia dos primeiros
habitantes do Brasil, apresentando traços generalizados e indistintos a
partir dos quais, ao longo dos milhares de anos, a grande diversidade
ameríndia se estabeleceu”, disse Strauss.
O arqueólogo explica que o estudo publicado na Cell também apresenta os primeiros dados genéticos para os sambaquis da costa brasileira.
"Esses monumentais montes de conchas foram construídos há cerca de 2
mil anos por sociedades populosas que ocupavam a faixa costeira do
Brasil. O estudo do DNA fóssil de esqueletos enterrados nos sambaquis de
Santa Catarina e de São Paulo mostra que esses grupos têm uma relação
de proximidade genética com os indígenas atuais do Sul do Brasil,
especialmente os grupos Kaingang”, disse.
Segundo Strauss, a extração do DNA fóssil encontra muitos desafios
técnicos, especialmente para material encontrado em clima tropical. A
fragmentação extrema e a alta incidência de contaminação fizeram com que
durante quase duas décadas diferentes grupos de pesquisas tentassem sem
sucesso extrair o material genético dos ossos de Lagoa Santa.
Foi graças a avanços metodológicos desenvolvidos pelo Instituto Max
Planck que agora foi possível realizar a extração de DNA do povo de
Lagoa Santa. E a depender do entusiasmo com que Strauss fala de sua
pesquisa, ainda há muito por descobrir.
"A partir de 2019, terá início a construção do primeiro laboratório
de Arqueogenética do Brasil, uma parceria na USP entre MAE e IB, com
financiamento da FAPESP. Quando estiver pronto, dará novo impulso às
pesquisas sobre o povoamento da América do Sul e do Brasil", disse
Strauss.
"De certo modo, este trabalho muda não somente o que sabíamos sobre o
povoamento, mas também muda consideravelmente o modo como estudar os
restos esqueletais humanos”, disse Figuti.
Os primeiros restos humanos de Lagoa Santa, cerca de 30 esqueletos,
foram encontrados em 1844, no fundo de uma gruta inundada, pelo
naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880). Quase todos
esses fósseis se encontram hoje no Museu de História Natural de
Copenhagen, na Dinamarca. Um único crânio ficou no Brasil, doado por
Lund ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro.
Povoamento aos saltos
No mesmo dia em que foi publicado o artigo na Cell (08/11), outro trabalho foi divulgado na revista Science,
igualmente versando sobre DNA fóssil e as primeiras migrações humanas
pelo continente americano. André Strauss é um dos autores.
Entre os 15 esqueletos antigos dos quais foi coletado material
genético, cinco pertencem à Coleção Lund, de Copenhagen. Suas idades
situam-se entre 10,4 mil e 9,8 mil anos. São os mais antigos da amostra,
ao lado de um indivíduo de Nevada, com 10,7 mil anos.
A amostra reúne material fóssil de restos humanos antigos achados no
Alasca, Canadá, Brasil, Chile e Argentina. O resultado da investigação
molecular sugere que o povoamento das Américas pelos primeiros grupos
humanos vindos do Alasca não foi simplesmente um movimento de ocupação
gradual do território simultâneo à expansão populacional.
Segundo os pesquisadores responsáveis pelo estudo, os dados
moleculares sugerem que os primeiros humanos a invadir o Alasca, ou
então o vizinho Yukon, dividiram-se em dois grupos. Isso ocorreu entre
17,5 mil e 14,6 mil anos atrás. Um grupo colonizaria a América do Norte e
a América Central. O outro dominaria a América do Sul.
A seguir, a ocupação das Américas teria ocorrido de forma rápida e
aos saltos, com pequenos bandos de caçadores-coletores percorrendo
grandes distâncias para se fixarem em novos ambientes até atingirem a
Terra do Fogo. Todo esse movimento durou um ou no máximo dois milênios.
Entre os 15 indivíduos que tiveram seu DNA analisado, três dos cinco
de Lagoa Santa guardam em seu material genético traços de DNA da
Australásia – como sugere a teoria da ocupação da América do Sul
defendida por Walter Neves. Os pesquisadores não sabem explicar a origem
daquele DNA australásio e como ele foi parar apenas e tão somente em
alguns indivíduos de Lagoa Santa.
"O fato de a assinatura genômica da Australásia estar presente há
10,4 mil anos no Brasil, mas ausente em todos os genomas testados até
hoje, tão antigos ou mais antigos, e achados mais ao norte, apresenta um
desafio ao considerar sua presença em Lagoa Santa”, disseram.
Para Strauss, a existência desse traço de DNA australásio é difícil
de explicar. "O componente australásio nos três indivíduos de Lagoa
Santa é quase negligenciável. É menos de 2% do DNA amostrado. No
momento, é muito difícil dizer qual a sua origem”, disse.
Ao longo do século 20, outros fósseis foram coletados, entre eles o
crânio de Luzia, nos anos 1970. Quase uma centena de crânios escavados
por Neves e Strauss nos últimos 15 anos se encontram atualmente na USP.
Outros tantos fósseis estão guardados na Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais.
Mas a grande maioria dessas preciosidades osteológicas e
arqueológicas, talvez mais de 100 indivíduos, estava depositada no Museu
Nacional, e foi presumivelmente consumida no incêndio que devastou
aquela instituição em 2 de setembro.
O crânio de Luzia estava exposto no Museu Nacional ao lado do busto
com suas feições feito por Neave. Temia-se que o crânio tivesse sido
destruído no incêndio, mas felizmente foi uma das primeiras peças do
museu recuperadas dos escombros. Mesmo que fragmentado, o crânio de
Luzia sobreviveu. Já o busto original (do qual há várias cópias), esse
se perdeu no fogo.
O artigo Reconstructing the Deep Population History of Central and South America, de Cosimo Posth, André Strauss e outros, pode ser lido em: www.cell.com/cell/fulltext/S0092-8674(18)31380-1.
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