Estudos genéticos dão nova cara ao Povo de Luzia
Representação do fóssil humano mais famoso do Brasil estava equivocada, segundo um novo estudo que sequenciou o DNA de vários esqueletos pré-históricos de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Segundo os pesquisadores, Luzia e seus conterrâneos não tinha feições africanas; eram tão ameríndios quanto qualquer outra população primitiva das Américas
Herton Escobar
08 Novembro 2018 | 15h45
08 Novembro 2018 | 15h45
Dados genéticos
extraídos do DNA de esqueletos enterrados numa caverna de Minas Gerais
estão dando uma nova cara à pré-história brasileira e, de quebra,
ajudando a reescrever 20 mil anos de história do povoamento das
Américas.
O resultado mais surpreendente diz respeito ao chamado Povo de Luzia, que habitou a região de Lagoa Santa,
próximo a Belo Horizonte, entre 12 mil e 9 mil anos atrás, e cujo nome
do grupo faz referência à sua personagem mais ilustre, Luzia, uma mulher
de 20 e poucos anos, cujo crânio foi encontrado por arqueólogos na
década de 1970 — e quase destruído no incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, dois meses atrás.
Contrariando algo que vinha
sendo proposto há mais de duas décadas, com base principalmente em
análises morfológicas do crânio de Luzia, as novas evidências genéticas
sugerem “de forma categórica”, segundo
os pesquisadores, que não há qualquer relação de parentesco entre o
Povo de Luzia e populações antigas da África ou da Austrália.
“Portanto, a hipótese de que o Povo de Luzia representaria uma leva
migratória anterior aos ancestrais dos indígenas atuais não se
confirma”, afirmam os autores brasileiros do estudo, publicado hoje na
revista Cell. “Pelo contrário, o DNA mostra que o Povo de Luzia tem genética totalmente ameríndia”
Aquela famosa reconstrução facial do crânio de Luzia, concebida na
década de 1990, com características notadamente negroides, portanto,
está equivocada, diz o pesquisador André Strauss, do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, que há anos
realiza escavações arqueológicas em Lagoa Santa e é um dos coordenadores
do estudo.
Para substituí-la, os pesquisadores encomendaram uma nova
reconstrução, baseada num outro crânio de Lagoa Santa (registrado como
Sepultamento 26) e levando em conta as novas evidências genéticas. O
resultado foi um rosto com uma uma morfologia muito mais “genérica”, da
qual teriam se originado “inúmeras variantes intra-continentais”. “É uma
espécie da tábula rasa, ou tela branca, que com o passar dos milênios
foi sendo moldada de diversas formas em diferentes populações”, afirma
Strauss.
As reconstruções faciais arqueológicas são baseadas em
características morfológicas do crânio e da mandíbula, mas também levam
em conta as hipóteses de ancestralidade do indivíduo — que vão
influenciar, por exemplo, características como a grossura dos lábios e o
formato do nariz. Assim, um mesmo crânio pode dar origem a rostos
completamente diferentes.
A dúvida sobre a origem do Povo de Luzia surgiu na década de 1990,
quando o antropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo,
descreveu o crânio de Luzia (até então esquecido nos arquivos do Museu
Nacional) como dotado de uma morfologia predominantemente negroide e com
11,5 mil anos de idade — mais antigo do que qualquer outro encontrado
nas Américas até então. Para explicar isso, Neves postulou que Luzia e
seu povo eram representantes de uma onda migratória anterior à que deu
origem ao ameríndios modernos. Essa primeira migração, segundo ele,
teria chegado pela mesma rota do Estreito de Bering — ou seja, também da
Ásia —, mas seria composta de indivíduos que ainda preservavam uma
morfologia negroide, em vez das feições mongoloides que predominam nos
povos indígenas atuais. Foi essa hipótese que norteou a reconstrução
facial de Luzia feita pelo britânico Richard Neave, em 1999, conferindo a
ela uma aparência mais africana do que asiática.
Naquela época, ainda não havia a possibilidade de se analisar o DNA
de fósseis humanos, como se faz agora com a chamada “arqueogenética”. As
análises, portanto, eram baseadas apenas na morfologia dos ossos e nas
informações arqueológicas associadas a eles. Neves foi procurado pela
reportagem, mas preferiu não se pronunciar.
Segundo Strauss, Neves (que foi seu orientador de mestrado no
Instituto de Biociências da USP) estava certo ao propor que o Povo de
Luzia representava uma população diferenciada e que eventualmente
desapareceu, substituída pelos ancestrais dos ameríndios modernos. A
genética associada ao Povo de Luzia, de fato, desaparece do continente 9
mil anos atrás. A diferença, segundo Strauss, é que a origem dela não
estava na África, mas na América do Norte.
Outra descoberta surpreendente do trabalho diz respeito ao povo da
cultura Clóvis, que floresceu na região dos Estados Unidos cerca de 13
mil anos atrás e ficou famosa pela confecção de pontas de lança de pedra
lascada. Acreditava-se que essa população tinha ficado restrita à
América do Norte, mas os dados genéticos de Lagoa Santa e outros dois
sítios arqueológicos (Los Rieles, no Chile; e Mayahak Cab Pek, em
Belize) revelam que o povo de Clóvis migrou também para as Américas
Central e do Sul, a partir de 12 mil anos atrás, dando origem a novas
populações — entre elas, o Povo de Luzia.
As pontas de pedra lascada aparentemente ficaram para trás, já que
nenhuma até hoje foi encontrada mais ao sul do que o México, mas a
genética Clóvis seguiu em frente. Essa é a grande vantagem da
arqueogenética, segundo Strauss: “Ela nos permite enxergar coisas que
não são invisíveis para a arqueologia clássica”, diz o pesquisador.
“Evidências que só são visíveis nos genes.”
O trabalho na Cell tem mais de 70 autores, de diversos países, dos quais 17 são brasileiros.
Um outro trabalho publicado hoje, na revista Science, também
com autores brasileiros, também analisou o DNA de esqueletos de Lagoa
Santa e outros sítios arqueológicos das Américas. Os resultados, em sua
maior parte, concordam com os resultados apresentados na Cell, mostrando
que o continente foi povoado por uma única onda migratória, e que a
dispersão e diversificação dessa população pelo continente ocorreu de
forma bastante rápida. Em menos de 2 mil anos, já havia gente vivendo
desde o norte do Canadá até o sul do Chile.
Uma diferença é que, neste caso, os pesquisadores encontraram um
“sinal genético” de origem australiana (negroide) na população de Lagoa
Santa, porém extremamente sutil e em apenas um dos cinco esqueletos
analisados. Algo que, segundo eles, não tem relação com a morfologia do
Povo de Luzia.
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