Descobertas chocantes nos rios da Amazônia
Existem três espécies de poraquês, peixes capazes da maior descarga elétrica entre seres vivos, e não apenas uma
O poraquê, peixe elétrico típico da Amazônia, é estudado pelo zoólogo brasileiro Carlos David de Santana,
pesquisador associado do Museu de História Natural Smithsonian, nos
Estados Unidos, há quase 20 anos. Trata-se de bichos grandes – até mais
de 2,5 metros (m) de comprimento – que ficam no fundo de partes rasas de
rios e lagos e usam a eletricidade para se comunicar e capturar presas.
Até agora, Electrophorus electricus era recorrente na pesquisa
de Santana, a única espécie de poraquê, descrita em 1766 pelo
taxonomista sueco Carl Lineu (1707-1778). Agora ele descobriu que esteve
todo esse tempo trabalhando com E. varii, uma das espécies que ele e colaboradores acabam de descrever em artigo na revista Nature Communications (10 de setembro), mudando como se entende a biologia e a evolução desses animais.
Entrevista: Carlos David de Santana
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“Os poraquês são os únicos peixes elétricos que conseguem produzir
uma descarga forte, que usam para capturar presas”, explica Santana. Os
outros produzem apenas eletricidade fraca para comunicação. O campeão é E. voltai,
também descrito agora, que consegue atingir 860 volts (V), tornando
esse peixe o gerador de bioeletricidade mais forte de que se tem
notícia. O nome é uma homenagem ao químico e físico italiano Alessandro
Volta (1745-1827), que se inspirou em peixes elétricos para desenvolver a
primeira pilha capaz de gerar eletricidade constante.
Para capturar os animais, Santana se protege com luvas de borracha ou
sacos de plástico, embora os choques tenham duração muito curta e não
provoquem o mesmo efeito de enfiar o dedo em uma tomada ou tocar em um
fio desencapado. “Dói, mas a pessoa não fica grudada”, relata. “Depois
de um tempo de trabalho, capturando poraquês com mais de 1,5 m, o suor
recobre o corpo e faz com que as luvas deixem de proteger; os choques
causam uma dormência no braço.” Para encontrá-los, ele conta com a ajuda
dos habitantes ribeirinhos da Amazônia – que costumam saber onde se
escondem os animais – e com um microfone e amplificador que detecta a
eletricidade, identificando o som produzido pelo poraquê.
O grupo conseguiu reunir, entre coletas feitas especialmente para o
projeto e amostras enviadas por colaboradores, 107 poraquês. Todos
amarronzados e bastante parecidos, à primeira vista. Análises genéticas,
ecológicas e variações na anatomia do corpo revelaram existir três
espécies. E. electricus e E. voltai têm cabeças
achatadas, a primeira em formato de U e a segunda mais ovalada. “Agora
consigo reconhecer as espécies”, diz Santana.
E. electricus, a originalmente descrita por Lineu, é
restrita ao escudo das Guianas, um planalto que inclui o norte da
Amazônia brasileira, as Guianas e parte da Venezuela. Ao sul da
Amazônia, no chamado escudo brasileiro, está E. voltai. E ao
longo de toda a bacia do Amazonas, desde a região dos Andes peruanos até
a foz do rio, vive o poraquê que foi batizado como E. varii. “As análises indicam que quando o Amazonas mudou de curso, ele fluía para oeste e passou a correr para leste, isso criou uma divisão entre os dois escudos que deve ter levado à formação de espécies distintas”, explica o pesquisador.
Ele e sua equipe caracterizaram ambientes distintos para os três poraquês. E. varii
habita as várzeas do Amazonas, de águas turvas, nem sempre bem
oxigenadas e com boa condutividade devido aos sedimentos que o rio traz
dos Andes. As duas espécies dos escudos vivem em águas claras
movimentadas e oxigenadas, às vezes com corredeiras e cachoeiras, menos
condutoras de eletricidade. Talvez por isso tenha utilidade a forte
descarga emitida por E. voltai. “Ainda não sabemos”, diz
Santana. Ele ainda pretende estudar se essa espécie desenvolveu um órgão
elétrico maior do que as outras.
As descobertas demonstram, segundo ele, quanta riqueza ainda está
escondida na Amazônia. Além do conhecimento em si da biodiversidade,
esses peixes estão associados a desenvolvimentos biotecnológicos. Os
órgãos elétricos inspiraram Volta, e Santana conta que a nadadeira de
peixes elétricos já serviu de modelo para o desenvolvimento de robôs
subaquáticos. “Eles têm nadadeiras longas que permitem que nadem para
frente e para trás ou que fiquem parados na água.”
O trabalho está inserido em um projeto coordenado pelo zoólogo
Naércio Menezes, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo
(MZ-USP), do qual Santana é pesquisador principal – uma colaboração
entre a FAPESP e o Smithsonian. “Queremos fazer um inventário completo
dos peixes elétricos, que existem na América do Sul e na África”, afirma
Menezes – há cerca de 250 espécies conhecidas.
Ele já esperava
encontrar novidades, portanto as espécies agora descritas não são uma
surpresa completa. “Esperamos ainda achar mais espécies novas com
coletas em lugares ainda não explorados para esses peixes”, diz. “O
estudo completo do genoma de E. voltai deve trazer informações
inéditas, que poderão ajudar a entender, por exemplo, a diferença da
descarga forte produzida pelas diferentes espécies de poraquê.”
Projeto
Diversidade e evolução de Gymnotiformes (Teleostei, Ostariophysi) (nº 16/19075-9) Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Naércio Aquino Menezes (USP); Investimento R$ 2.911.285,69.
Artigo científico
SANTANA, C. D. de, et al. Unexpected species diversity in electric eels with a description of the strongest living bioelectricity generator. Nature Communications. On-line. 10 set. 2019.
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