Cultura de uso de ferramentas por macacos-prego variou ao longo de 3 mil anos
Estudos de arqueologia e etologia se encontram na serra da
Capivara, no Piauí, e revelam o primeiro registro conhecido de mudanças
culturais em primatas não humanos
Enquanto arqueólogos escavam o solo duro e seco da Caatinga
no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, em busca de vestígios
do passado, macacos-prego logo ao lado usam pedras para quebrar cocos,
sementes e castanhas-de-caju. Provavelmente de modo semelhante ao que
fazem há pelo menos 3 mil anos, como revela parceria entre pesquisadores
da Inglaterra e do Brasil. “Eles vão se tornando um pouco primatólogos,
enquanto nós viramos um pouco arqueólogos”, conta o biólogo Tiago
Falótico, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de
São Paulo (EACH-USP), que coordenou as escavações mais recentes. Há seis
anos ele e seu antigo supervisor Eduardo Ottoni, do Instituto de
Psicologia da USP, trabalham em parceria com os arqueólogos britânicos
Michael Haslam e Tomos Proffitt, do University College London, na
investigação de como viviam os macacos. Descobriram que, assim como
acontece hoje entre diferentes grupos de primatas, no passado a cultura
de uso de ferramentas variou, como descreve artigo publicado nesta
segunda (24/6) na revista Nature Ecology & Evolution. “É a primeira vez que se constata essa variação cultural em registros arqueológicos de primatas não humanos”, afirma Falótico.
Entrevista: Tiago Falótico
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Há alguns anos as escavações por lá revelaram que os macacos-prego da serra da Capivara (Sapajus libidinosus) já usavam pedras para quebrar castanhas-de-caju em tempos pré-colombianos.
Chimpanzés, que desbancaram o uso de ferramentas como característica
definidora dos seres humanos, já manejavam pedras há 4 mil anos de
acordo com escavações na Costa do Marfim, na África. Mas lá não há
sinais de que tenham alterado o comportamento.
Os macacos-prego são ricos em variações de comportamento, que alguns especialistas chamam de culturas.
Há grupos que usam pedras, outros preferem gravetos.
Depende do tipo de
alimento disponível em cada área, mas também do que os jovens de cada
população aprendem com os mais velhos. Da mesma maneira, à medida que
foram escavando mais fundo – e regredindo no tempo – os pesquisadores
encontraram variação. O material depositado entre 2.400 e 3 mil anos
atrás revela o uso extenso de pedras pequenas, cheias de quebras
causadas por impactos repetidos.
Provavelmente eram usadas para
processar alimentos menos duros do que castanhas-de-caju. “Hoje eles
usam pedras semelhantes para quebrar sementes e frutos como os da
maniçoba [Manihot pseudoglaziovii], uma planta da família da
mandioca”, conta Falótico, que interpreta as marcas no material
arqueológico com base no que os macacos fazem hoje. Infelizmente não foi
possível detectar resíduos dos alimentos nas pedras encontradas, mas
ele ainda não desistiu. “Outras áreas podem ter condições de preservação
diferentes que um dia nos permitam identificar resíduos.”
Na fase seguinte, entre aproximadamente 565 e 640 anos atrás,
conforme datação de fragmentos de carvão resultantes de queimadas e
presentes no sedimento, os macacos ainda usavam pedras pequenas, mas já
existiam mais bigornas – superfícies planas onde apoiam o alimento no
momento da quebra. Mais recentemente, eles parecem ter começado a usar
pedras maiores que permitem processar castanhas bem duras e disseminaram
o uso de bigornas. Eles chegam a erguer acima da cabeça pedras de cerca
de 3 quilogramas, semelhante ao próprio peso. Também usam pedras para cavar e paquerar, entre outras utilidades.
É impossível estabelecer os motivos dessa variação no registro
arqueológico. Será que começavam a desenvolver as técnicas e aos poucos
foram descobrindo que funcionava e explorando fontes alimentares antes
inacessíveis?
Ou grupos da mesma época já tinham costumes variáveis,
transmitidos de uma geração para outra, e a escavação de outros sítios
revelará uma diversidade cultural já nos tempos mais antigos? Ou, ainda,
em certos momentos os alimentos disponíveis não exigiam maiores
esforços? Todas são possibilidades plausíveis, embora a análise de
amostras de pólen fossilizado revele que há 7 mil anos já havia
cajueiros na região. Não significa, porém, que estivessem constantemente
em todos os lugares, pode ter havido variação na abundância dessa
árvore.
O trabalho – dos macacos no manejo das pedras e das pessoas que os
estudam – continua, e Falótico divide seu tempo de trabalho de campo
entre as escavações e a observação do comportamento atual. “Gosto mais
de seguir os macacos do que de ficar agachado cavando”, confessa. Ele
tem se concentrado em estudar os padrões das lascas obtidas pela quebra
das pedras batidas umas contra as outras, que alguns anos atrás se
mostraram indistinguíveis daquelas produzidas pelos homens das cavernas. A região, onde registros da ocupação humana podem estar entre os mais antigos do continente, ainda parece ter muito a revelar sobre as atividades de pessoas e macacos ao longo de milhares de anos.
“Pode haver sítios ainda não encontrados relacionados a primatas”,
diz a arqueóloga Mercedes Okumura, do Instituto de Biociências da USP,
que não tem conhecimento de outro sítio comparável em termos de
documentação de arqueologia envolvendo tanto seres humanos como outros
primatas. Ela é coautora de um artigo publicado em 2018 na revista Quaternaire
que descreve a formação das camadas arqueológicas do boqueirão da Pedra
Furada, no Parque Nacional da Serra da Capivara, levando em conta as
contribuições de pessoas e macacos (contou para isso com acesso aos
dados do grupo de Falótico).
Entre os achados das escavações é difícil
dizer quem produziu as lascas mais simples, ela conta, mas atribui com
segurança a seres humanos estruturas mais complexas de pedra lascada.
Ela vê como frutífera a relação com os arqueólogos-primatólogos. “Me
refiro realmente a uma via de mão dupla: quem faz arqueologia ‘humana’
pode aprender muito também ao estudar esses casos relacionados a outros
primatas.”
Projetos
1. Uso de ferramentas por macacos-prego (Sapajus libidinosus) selvagens: ecologia, aprendizagem socialmente mediada e tradições comportamentais (nº 2014/04818-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa — Temático; Pesquisador responsável Eduardo Benedicto Ottoni (USP); Investimento R$ 611.005,29.
2. Uso de ferramentas por macacos-prego: aprendizagem e tradição (nº 2013/05219-0); Modalidade Bolsa de pós-doutorado; Pesquisador responsável Eduardo Benedicto Ottoni (USP); Beneficiário Tiago Falótico; Investimento R$ 423.450,88.
Artigos científicos
FALÓTICO, T. et al. Three thousand years of wild capuchin stone tool use. Nature Ecology & Evolution. on-line. 26 jun. 2019.
PARENTI, F. et al. Genesis and taphonomy of the archaeological layers of Pedra Furada rock-shelter, Brazil. Quaternaire. v. 29, n. 3, p. 255-69. nov. 2018.
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