Um estranho no Grand Canyon
Pegadas fósseis de 280 milhões de anos são o primeiro registro de
vertebrados, em tese, não adaptados a ambientes secos em um antigo
deserto
Não muito longe da Trilha do Eremita, uma das mais conhecidas
rotas de caminhada do Parque Nacional do Grand Canyon, no estado
norte-americano do Arizona, um bloco de arenito de 4,6 metros (m) de
comprimento por 2,2 m de altura foi encontrado em 2013.
A pedra gigante
despencara de uma das encostas que pontuam a paisagem árida e montanhosa
da região. Esse bloco provém de rochas sedimentares formadas pelo
processo de compactação e cimentação dos grãos de quartzo de um deserto
que existiu ali há aproximadamente 280 milhões de anos, no início do
período Permiano. Em uma das faces do bloco, havia quatro trilhas de
pegadas fossilizadas, vestígios deixados por animais da pré-história que
andaram por aquelas paragens quando havia um deserto com dunas formadas
pelo vento. Em outras seis localidades da região, também em rochas do
Permiano da formação geológica denominada Arenito Coconino, foram
achados mais 12 conjuntos de rastros semelhantes.
Paleontólogos do
Brasil, dos Estados Unidos e da Alemanha estudaram as pegadas fósseis e
chegaram a uma conclusão inesperada: os vestígios foram produzidos por
animais peculiares que, em teoria, não deveriam ter vivido em um
deserto, pois não fazem parte do grupo reconhecidamente apto a
sobreviver e se reproduzir longe de ambientes úmidos, os amniota.
As pegadas fossilizadas representam o primeiro registro conhecido de
um enigmático grupo extinto de vertebrados denominados diadectomorfos,
quadrúpedes que tinham algumas características de anfíbios e outras de
répteis, em um deserto.
“Essa é a evidência mais antiga de colonização
de um ambiente desértico por vertebrados anamniotas, que não estavam, em
princípio, aptos a viver em locais tão áridos”, comenta o paleontólogo
Heitor Francischini, que hoje faz estágio de pós-doutorado na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), principal autor do
artigo que descreve as pegadas, publicado no periódico científico Paläontologische Zeitschrift em 13 de maio deste ano. “Não esperávamos encontrar o registro desses animais em rochas provenientes de um paleodeserto.”
Os anamniotas são vertebrados cujos embriões não são revestidos por
membranas (o âmnio, o cório e o alantoide) que lhes servem de proteção
contra o ressecamento e choques mecânicos. Seus ovos são desprovidos de
uma casca rígida. Essa característica obriga esses animais, hoje
representados pelos peixes e anfíbios, a viver dentro ou perto da água,
onde depositam diretamente seus ovos. Os amniotas, que hoje incluem os
répteis, os mamíferos e as aves, gestam seus filhotes dentro do próprio
corpo ou depositam na terra seus ovos, que têm casca dura.
De aparência
que lembra um corpulento lagarto, com patas curtas, os diadectomorfos
são considerados como animais de transição entre os anamniotas e os
amniotas. “Antes dessas pegadas, pensávamos que apenas alguns tipos de
amniotas viviam em desertos antigos”, diz Spencer Lucas, curador da
seção de paleontologia do Museu de História Natural e Ciência do Novo
México, em Albuquerque, outro autor do estudo. “Agora sabemos que os
habitantes desses ambientes eram muito mais diversos.”
Francischini foi chamado para estudar as pegadas fósseis encontradas
no bloco de arenito em 2017, quando, como parte de uma bolsa-sanduíche
do seu doutorado, passou uma temporada no museu norte-americano sob
supervisão de Lucas. Como o brasileiro estuda icnofósseis, vestígios
deixados por animais que permanecem preservados nas rochas, os rastros
encontrados no Grand Canyon se tornaram objeto de um novo trabalho.
A
sucessão de pegadas, associadas ao gênero Ichniotherium, foi
produzida por animais adultos e juvenis que tinham cinco dedos sem
garras. Seu tamanho varia entre 11 e 37 centímetros, indício de que
esses seres podiam passar de 1 m de comprimento. Esse tipo de pegada é
comumente encontrado na Europa e com menor frequência na América do
Norte e na África.
Sua descoberta em rochas associadas a um paleodeserto, se for corroborada por outros achados semelhantes, talvez possa levar a uma nova revisão na classificação dos diadectomorfos, grupo que tem sido alvo de reavaliações à medida que surgem mais evidências sobre seu provável modo de vida. Atualmente, eles são considerados como o grupo mais próximo dos primeiros amniotas, que surgiram por volta de 350 milhões de anos atrás. Ambos os grupos são vistos como muito próximos em termos evolutivos e teriam descendido de um ancestral comum.
No
entanto, cada linhagem teria seguido um caminho distinto, sendo,
aparentemente, apenas os amniotas especializados em se reproduzir sem a
presença de água. Pelo menos, essa é a interpretação mais clássica. “A
presença de diadectomorfos em um ambiente árido significa que eles
provavelmente teriam que ser capazes de se reproduzir como hoje fazem os
amniotas, seja dando à luz a seus filhotes ou botando algum tipo de ovo
com casca”, pondera o paleontólogo Juan Carlos Cisneros, da
Universidade Federal do Piauí, que estuda répteis dos períodos Permiano e
Triássico e não participou do trabalho sobre as pegadas fósseis do
Arizona.
“Contudo, nunca foram encontrados ovos desse grupo de animais
com casca. Por isso, essa questão continua em aberto.” Há ainda outra
possibilidade: hoje existem alguns anfíbios anamnióticos adaptados a
desertos, que se reproduzem por meio de ovos sem cascas e que não são
incubados no corpo dos pais. Ainda que incomum, esse tipo de acomodação
também pode ter ocorrido no passado.
Desde 1918, um ano antes de o parque nacional ter sido criado, a
região do Grand Canyon apresenta registros de pegadas fósseis. Segundo
Vincent Santucci, coordenador do programa de paleontologia do Serviço
Nacional de Parques dos Estados Unidos, esse tipo de vestígio é
descoberto com regularidade nessa área do Arizona.
“Há uma abundância de
pegadas fósseis no Arenito Coconino, o que sugere que muitos
vertebrados viviam nesse antigo deserto”, comenta Santucci, que também
assina o novo estudo. “Mas nenhuma delas, até então, se parecia com a de
um diadectomorfo.”
Artigo científico
FRANCISCHINI, H. et al. On the presence of Ichniotherium in the Coconino Sandstone (Cisuralian) of the Grand Canyon and remarks on the occupation of deserts by non-amniote tetrapods. Paläontologische Zeitschrift. 13 mai. 2019.
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