Diversificação das aves amazônicas dependeu dos rios e do clima
Região oeste da floresta é mais estável e pode ter servido como
refúgio, enquanto instabilidade da porção sudeste teria impulsionado a
formação de espécies
Os cursos variáveis dos rios e as flutuações climáticas ao
longo dos milhares de anos, agindo em parceria, são responsáveis pela
grande diversidade de aves na Amazônia, que abriga a maior floresta
tropical do mundo. “O clima toca a música, mas quem dá os passos são as
aves às margens dos rios”, resume o biólogo Alexandre Aleixo, atualmente
professor na Universidade de Helsinque, na Finlândia. É uma mudança de
visão em relação ao foco dado aos caudalosos rios como responsáveis por
isolar espécies habitantes de margens opostas. Os resultados do trabalho
liderado por ele foram publicados na quarta-feira, 3 de julho, na
revista científica Science Advances.
Entrevista: Alexandre Aleixo
Entender a diversidade de animais e plantas que compõem a floresta
amazônica tem sido, há décadas, o foco de muitos pesquisadores de áreas
biológicas e, mais recentemente, geológicas (ver Pesquisa FAPESP nº 242).
Com o recente avanço na capacidade de obter sequências genéticas, os
pesquisadores construíram genealogias usando sequências de DNA de mais
de mil espécimes de 23 espécies de aves dependentes de áreas de matas
úmidas, com ampla distribuição pela Amazônia.
De posse dessa genealogia,
e dos dados geográficos de onde foram coletadas, além de cerca de 6.500
outros registros de localidades, foi possível fazer o que os
especialistas chamam de modelagem de nicho: delinear as condições
climáticas nas quais vivem e extrapolar esse mapeamento para o que se
conhece do clima amazônico nos últimos 20 mil anos. “Ninguém tinha
analisado tantas amostras com uma distribuição tão ampla na Amazônia”,
afirma Aleixo.
“Os rios são extremamente importantes, mas não contam toda a história
evolutiva da biodiversidade.” Eles só se tornam barreiras, de acordo
com o pesquisador, depois que as espécies chegam às suas margens. Nesse
trajeto, há espaço e tempo para uma enorme variação de trajetórias.
“Caso contrário, todas as espécies teriam reagido ao mesmo tempo quando o
rio surgiu, e não encontramos essa sincronia cronológica.” Algumas
espécies têm uma história de 5 milhões de anos, outras de 500 mil. E aí
entram os fatores climáticos, que delimitam a extensão da floresta e a
composição da flora e da fauna.
O trabalho também reforça a ideia de que a Amazônia está longe de se
comportar como unidade. A região sudeste da floresta, delimitada pelos
rios Tapajós e Amazonas, assim como um corredor marcado pelo rio Negro,
são instáveis e mais recentes.
Aleixo explica que a floresta só existe
ali nos momentos em que o clima é ideal – com intensa umidade e um
regime de chuvas previsível – como atualmente. No passado a vegetação
era diferente naquela área, assim como deve acontecer no futuro, caso se
mantenham as projeções de mudanças climáticas. “Nossos dados se
encaixam no que dizem os modelos do grupo do [climatologista] Carlos
Nobre, do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], que preveem
alterações na floresta quando ultrapassarmos 40% de desmatamento e
atingirmos determinados padrões de temperatura e pluviosidade.”
Refúgios
O curioso é que o artigo de Aleixo está sendo publicado quase exatamente 50 anos depois do trabalho do biogeógrafo alemão Jürgen Haffer (1932-2010), na edição de 11 de julho de 1969 da revista Science, que lançou as bases da compreensão da biodiversidade amazônica. Era a teoria dos refúgios, em seguida também proposta pelo herpetólogo brasileiro Paulo Vanzolini (1924-2013), que postulava que algumas áreas de estabilidade serviram como repositórios de espécies, em momentos no qual a floresta se retraiu.
Os resultados recentes mostram que Haffer
tinha razão em muitos aspectos e até hoje continua a ser a referência
principal para quem estuda diversificação de espécies na região. “A
lógica de refúgios existe, mas encontramos algumas diferenças”, explica
Aleixo. Em vez de pequenas áreas de manutenção da floresta, os
pesquisadores perceberam que o noroeste da Amazônia, uma meia-lua
delimitada pelos rios Negro e Madeira, é muito importante do ponto de
vista da ancestralidade das espécies. “Foi um grande refúgio, e as aves
acompanharam.”
O horizonte de tempo que ele enxerga, tendo aberto uma
janela para 2 milhões de anos atrás, também é mais distante do que o de
Haffer. “A história das espécies é mais antiga do que os 20 mil anos que
ele pensava, desde o Último Máximo Glacial: detectamos que as espécies
mais jovens têm de 400 a 100 mil anos de idade, aproximadamente.”
Aleixo também vê de modo mais complexo a ação dos rios. As enormes
extensões de água que se vê hoje são certamente barreiras, inclusive
para as aves. Ocorre que os rios amazônicos mudam, são dinâmicos. Ao
longo dos milênios eles serpenteiam, estreitam, alargam, formam alças,
mudam de leito. Nesse processo dinâmico, surgem híbridos que depois, quando voltam a ser isolados, podem dar origem a novas espécies.
“Em vez de a instabilidade dos rios homogeneizar as variações entre
linhagens, como se achava, acreditamos que ela pode potencializar o
surgimento de variabilidade.” Isso, segundo ele, é uma importante quebra
de paradigma.
“Eles mostram que a história desses animais de terra firme estudados
aconteceu no curto espaço de tempo de cerca de 6 milhões de anos,
semelhante ao que permitiu a separação entre o ser humano e o
chimpanzé”, comenta o biólogo Fábio Raposo do Amaral, do campus
de Diadema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Ele não
participou do trabalho, mas estuda processos evolutivos em aves da Mata
Atlântica: apesar de ser um ambiente muito distinto, as conclusões para a
Amazônia podem ser inspiradoras. Para ele, o ponto crucial do trabalho
liderado por Aleixo é mostrar como processos distintos podem agir em
conjunto, acrescentando uma pitada de complexidade. “Na Mata Atlântica é
importante como a complexidade do relevo oferece, em sinergia com o
clima, oportunidades de isolamento”, compara. E brinca: “Talvez os
padrões sejam muito menos comportados do que gostaríamos”.
Além dos resultados em si, o trabalho liderado por Aleixo é uma ode
às coleções zoológicas armazenadas em museus. Entre as amostras
examinadas, 90% estavam em coleções brasileiras – principalmente do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG),
onde ele estava até se mudar para a Finlândia, e do Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia (Inpa), além de outras como do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP).
“Outro país não poderia ter reunido essa história, já que a Amazônia
brasileira é a única a conter todas as nove províncias biogeográficas da
bacia”, conclui.
Projeto
Estruturação e evolução da biota amazônica e seu ambiente: Uma abordagem integrativa (nº 12/50260-6); Modalidade Programa Biota/Dimensions-NSF; Pesquisadores responsáveis Lúcia Lohmann (IB-USP) e Joel Cracraft (AMNH); Investimento R$ 6.297.928,48.
Artigo científico
SILVA, S. M. et al. A dynamic continental moisture gradient drove Amazonian bird diversification. Science Advances. v. 5, n. 7, eaat5752. 3 jul. 2019.
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