Embriões de 278 milhões de anos
O estudo das estratégias reprodutivas adotadas pelos vertebrados é
de grande importância para a compreensão da evolução desse grupo. Foi a
partir do surgimento do ovo amniótico (série de membranas que protegem o
embrião) que esses animais puderam, de forma definitiva, conquistar a
terra firme. Com o ovo amniótico, os vertebrados não precisaram mais
passar por um estágio larval seguido de metamorfose – o que ocorre em
anfíbios de modo geral.
O estudo das estratégias reprodutivas adotadas
pelos vertebrados é de grande importância para a compreensão da evolução
desse grupo
O grupo de vertebrados dotados de ovo amniótico – chamados de
amniotas – reúne os mamíferos e os répteis (incluindo dinossauros e
aves). Esse ovo pode ter uma casca dura, como ocorre em grande parte dos
répteis, ou ser composto apenas pelas membranas, como no caso dos
mamíferos.
Entre os amniotas, há animais que fazem a postura de seus ovos
(denominados ovíparos) e outros cujo embrião se desenvolve dentro do
corpo da mãe (chamados de vivíparos). Existem ainda aqueles – chamados
de ovovivíparos – cujo ovo é retido por um tempo prolongado dentro do
corpo das fêmeas e a postura é realizada quando o embrião já se encontra
em um estágio de desenvolvimento bastante avançado.
O aparecimento do ovo amniótico em vertebrados é um assunto bastante
debatido no meio acadêmico. Embora os primeiros amniotas descobertos
datem de aproximadamente 340 milhões de anos atrás, não existia, até
agora, qualquer evidência direta ou indireta acerca da estratégia
reprodutiva desses animais.
Particularmente em depósitos do Paleozoico (era geológica que
compreende camadas formadas entre 542 milhões e 251 milhões de anos
atrás), nunca tinham sido encontrados indícios de ovos ou de embriões,
fato que intrigava os cientistas, já que, em alguns depósitos, houve
extensa atividade de coleta ao longo de décadas. Uma das explicações
para essa ausência está relacionada ao baixo potencial de preservação de
embriões e ovos, que são bastante frágeis.
Mas uma descoberta recente feita por pesquisadores uruguaios e
brasileiros acaba de fornecer novas pistas sobre a maneira como os
répteis mais primitivos se reproduziam. O achado, publicado na Historical Biology, indica que a viviparidade em animais dotados de ovo amniótico é bem mais antiga do que se supunha.
Viviparidade em répteis primitivos
Até então, o registro mais antigo de animal amniota vivíparo pertence a um réptil marinho primitivo chamado de Keichosaurus.
Essa forma, da qual são conhecidas algumas dezenas de espécimes, é
procedente de rochas do Triássico com aproximadamente 230 milhões de
anos encontradas na China. O tamanho dos indivíduos é relativamente
pequeno: o comprimento da cauda até o focinho é menor do que 30
centímetros (cerca de um palmo e meio).
A hipótese de que essa espécie já teria desenvolvido o ovo amniótico
foi levantada pelos pesquisadores responsáveis pela descoberta porque
foram encontrados alguns embriões diretamente associados ao corpo de
supostas fêmeas.
A pesquisa recua em cerca de 50 milhões de anos o registro mais antigo de um animal amniota vivíparo
O novo estudo, que foi liderado por Graciela Piñeiro, da Faculdade de
Ciências, em Montevidéu (Uruguai), e teve a participação de Jorge
Ferigolo, da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (Brasil),
encontrou interessantes evidências de viviparidade em restos de
mesossauros (répteis aquáticos primitivos) coletados em rochas de 278
milhões de anos. Dessa forma, a pesquisa recua em cerca de 50 milhões de
anos o registro mais antigo de um animal amniota vivíparo.
São reconhecidas três espécies de mesossauros, pertencentes a três gêneros distintos: Mesosaurus, Stereosternum e Brazilosaurus.
De forma geral, a aparência desses pequenos animais – que raramente
chegam a ter um metro de comprimento – lembra superficialmente a de
lagartos e seus hábitos são considerados marinhos.
Os restos de mesossauros são relativamente numerosos em alguns
depósitos tanto no Brasil como no Uruguai. Também já foram coletados em
Goiás e, sobretudo, na África do Sul. Vale a pena ressaltar que, como os
mesossauros são encontrados tanto na América do Sul quanto na África,
eles são evidências diretas da união desses continentes no passado
distante, já que dificilmente teriam condições de cruzar o oceano
Atlântico, cuja dimensão atual foi formada ao longo de milhões de anos.
Graciela e seus colaboradores estudaram dezenas de indivíduos
coletados no Brasil e no Uruguai e encontraram evidências de embriões
diretamente associados ao corpo de indivíduos adultos, incluindo uma
possível fêmea com um embrião ainda no interior de seu corpo. Também
havia outros espécimes cujas dimensões diminutas (menos de 15
centímetros de comprimento) sugerem tratar-se de animais muito jovens,
possivelmente embriões.
Com base nesses exemplares, além de estabelecer o registro mais
antigo de viviparidade em amniotas primitivos, os autores puderam fazer
várias sugestões com relação à reprodução dos mesossauros. Uma delas é
que uma fêmea deveria carregar poucos filhotes – apenas um ou dois de
cada vez. Caso essa interpretação esteja correta, existe a possibilidade
de que os mesossauros cuidassem de seus filhotes recém-nascidos, um
comportamento comum em animais com prole reduzida.
A pesquisa abre uma interessante possibilidade de investigação, já
que o desenvolvimento de estratégias reprodutivas é absolutamente
fundamental do ponto de vista da evolução dos organismos. Distintas
formas encontram maneiras diferentes de se reproduzir para possivelmente
se adaptar às novas situações e condições surgidas durante a evolução
do nosso planeta. E assim a vida continua, cheia de surpresas
interessantes, tanto no passado como no presente…
Aproveito para agradecer ao professor Jorge Ferigolo por me enviar o artigo em questão.Alexander Kellner
Museu Nacional/ UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
Os hábitos alimentares dos Mesossauros
Reconstrução
do esqueleto de um jovem adulto (Mesosaurus tenuidens) do Permiano
Inferior do Uruguai e Brasil (reproduzido de Silva et al., 2017)
Mesossauros e a evolução inicial dos Amniotas
Mesossauros representam os mais
surpreendentes animais do distante passado. Eles são os mais antigos
amniotas que desenvolveram adaptações ao ambiente aquático. No início do
Permiano, mesossauros habitavam corpos dágua frios e salgados
resultantes de uma seca de um grande mar interior que se extendia sobre o
que é hoje a América do Sul e África (Piñeiro et al., 2012b).
Mesossauros são representados por várias espécies e uma miríade de
espécimes, incluindo esqueletos bem preservados do Permiano Inferior do
Uruguai, Brazil, e África do Sul, os quais vêm sendo estudados há muito
tempo desde o século XIX. Graças à específica distribuição geográfica de
seus restos, os mesossauros ajudaram Alfred Wegener a formular a Teoria
da Deriva Continental.
O estudo dos mesossauros, é de fato
importante por diversas razões. A primeira delas, é que eles representam
os chamados amniotas basais. Isto significa que os mesossauros estavam
bem próximos na árvore evolutiva ao ancestral comum de todos os
sauropsídeos (grupo que inclui répteis, seus ancestrais e parentes) e
Sinapsida (grupo que inclui os mamíferos, seus ancestrais e parentes).
Por exemplo, a descoberta recenté de embriões de mesossauros bem
preservados dentro de ovos, e uma fêmea grávida forneceram pistas sobre a
biologia reprodutiva dos primeiros amniotas (Piñeiro et al., 2012a).
Curiosamente os Mesossauros eram viviparos ou colocavam ovos em estágios
avançados de desenvolvimento. Achados do Uruguai com associação de
restos de adultos e recém nascidos, sugerem que talvez existisse algum
tipo de cuidado parental nos Mesossauros.
Esses dados podem ser melhor
compreendidos quando interpretados em um contexto paleoecológico mais
amplo. Entretanto, uma equipe de quatro pesquisadores do Uruguai, Brasil
e Polônia (R.R. Silva, J. Ferigolo, P. Bajdek, G. Piñeiro) liderada por
Graciela Pineiro, recentemente publicou um novo artigo sobre a biologia
dos Mesossauros (Silva et al., 2017), que expande de forma ampla nosso
conhecimento sobre esses animais. Aqui, queremos resumir nossas
conclusões a respeito dos hábitos alimentares, fisiológicos e ambientais
dos mesossauros do Uruguai e do Brasil.
Supostos
regurgilitos (vômito fóssil) de Mesossauros da Formação Mangrullo,
Uruguai; escala 1cm (reproduzido de Silva et al., 2017)
Achados incomuns do Permiano Inferior do Uruguai e Brasil
Restos gástricos, cololitos (matérial
intestinal fossilizado), coprólitos (fezes fossilizadas) e regurgilitos
(vômito fóssil) de Mesossauros que nos estudamos, nos dizem muito sobre
os hábitos alimentares, fisiologia, e os hábitos de vida dos
Mesossauros. Estes fósseis provêm da Formação Mangrullo do Uruguai e da
Formação Irati do Estado de Goiás, Brasil. Os Mesosaurideos viveram em
um corpo dágua interior hipersalino com condições excepcionais de
preservação que justificam descrever os estratos com ocorrência de
mesossauros como sendo um “fóssil-Lagerstätte”.
Primeiro de tudo, nosso estudo representa
um caso excepcional onde conteúdo gástrico, cololitos, coprolitos, e
regurgilitos (i.e. todas os tipos básicos de bromalitos) de uma única
espécie animal foram descritas. Isto nos deu uma oportunidade incomum de
fazer algumas observações sobre estes tipos fósseis, tais como comparar
sua forma geral de preservação e até mesmo o grau de digestão dos
restos ingeridos em diferentes estágios do processo digestório.
Paleontólogos dificilmente conseguem
associar as fezes fossilizadas aos animais que as produziram. Este caso é
diferente. Nenhum outro Tetrápode foi encontrado nos estratos com
Mesossauros. Os coprolitos possuem a morfologia não-espiral que é tipica
dos tetrápodes, ao contrario de todos os peixes do Perído Permiano.
Finalmente, o conteúdo dos coprolitos é comparável aos encontrados nos
conteúdos estomacal e intestinal dos Mesossauros. Por outro lado os
espécimes menores de coprolitos poderiam ter sido produzido por grandes
crustáceos.
Uma oportunidade de conhecer os hábitos
alimentares de um animal extinto não deve ser desperdiçada.
Anteriormente, a dieta dos Mesossauros era apenas inferida a partir de
evidências indiretas, o que de fato é um tipo de “adivinhação educada”.
Durante mais de cem anos, várias hipóteses foram propostas para
determinar os hábitos alimentares: piscívoros; filtradores de lodo, ou
dieta baseada em Crustáceos. Agora, vamos examinar profundamente o
estômago dos mesossauros…
Esqueleto
de Mesossauro (Brazilosaurus sanpauloensis) mostrando um colólito bem
preservado (seta azul) e diversos coprolitos associados (setas
vermelhas), da Formação Irati, Brasil (modificado de Silva et al., 2017)
Canibalismo e carniceiros sobre estresse ambiental
Nós descobrimos que a dieta dos
mesossauros incluia os crustáceos como o ítem predominante, corroborando
algumas hipóteses. Por outro lado, estão ausentes restos de peixes no
conteúdo gástrico dos mesossauros, nos cololitos, coprolitos e
regurgilitos, e além disso nenhum peixe foi encontrado nos estratos
fossilíferos de Mesossauros. De forma adicional, ossos de mesossauros
parcialmente digeridos e dentes foram encontrados nos restos
alimentares.
A presença de restos de mesossauros no
conteúdo estomacal, nos regurgilitos, e outros restos alimentares é
particularmente interessante. No entanto, suposições fáceis no estudo
bromalitos são por vezes enganosas. Os mesossauros eram predadores
canibais? Bem, a abertura bucal/mandibular em um mesossauro de tamanho
médio era muito pequena para permitir que mesmo os mesossauros
recém-nascidos pudessem ser engolidos inteiros, enquanto que os dentes
dos mesossauros não mostram ser adaptados para uma mordida forte. Um
cenário de predação seria portanto um pouco surpreendente para nós. Em
vez disso, observamos mesossauros alimentados com crustáceos,
geralmente, não superiores a 2 cm de comprimento. Observando de forma
mais atenta o conteúdo gástrico, não foram observados elementos
esqueletais articulados, o que se esperaria estar presente nos estágios
iniciais do processo digestório.
A explicação para este mistério requer
uma análise sobre o ambiente no qual viviam os Mesossauros. Seus restos
são encontrados em rochas formadas em um corpo dágua hipersalino e tal
ambiente é famoso pela severidade extrema. As condições estressantes
podem ter sido causadas pela grande atividade vulcânica cujas cinzas se
espalharam no corpo de água durante o início do Permiano. As condições
ambientais e a pobreza faunística do “mar salgado” com mesossauros são a
primeira chave para o mistério. Não havia peixes na água, e quase nada
para os mesossauros comer, exceto crustáceos e… corpos de mesossauros
mortos.
O comportamento canibal e carniceiro são
muito comuns em ambientes estressantes, com superpopulação e com
recursos alimentares insuficientes. Mesossauros provavelmente ingeriam
carniça em decomposição parcial. Parece possível ainda que restos
maiores de crustáceos fossem colhidos do fundo, uma vez que parece ser
material muito alterado.
Messosauros regurgitavam os grandes
fragmentos ósseos bem como crustáceos, quando eram grandes demais para
passar pelo trato gastrointestinal. Vários amniotas como por exemplos as
aves de rapina, Crocodilos, e provavelmente Ictiossauros, regurgitavam a
maior parte do material não digerido ou duros demais. Alguns pedaços
podiam ter sido ingeridos acidentalmente, ou os mesossauros estavam com
muita fome neste ambiente hostil? A regurgitação pode ter sido causada
pelo próprio estresse ambiental. Porque a eficiência da digestão depende
da temperatura corporal em répteis atuais e restos não digeridos podem
ser regurgitados durante períodos de temperatura ambiente desfavorável.
Doenças também podem causar a regurgitação.
A presença de elementos ósseos nos
coprólitos dos mesossauros também é intrigante. Répteis são
caracterizados por uma digestão intensa e muitos deles podem digerir
completamente ossos praticamente engolidos inteiros. No entanto,
mesossauros eram relativamente pequenos, e seu período de digestão não
era necessariamente muito longo. Além disso, a presença de restos mal
digeridos nas fezes, causada por uma curta digestão, pode ter a ver com a
flutuação na disponibilidade de alimentos.
Epílogo da história dos Mesossauros
Fossilização dos restos e seus bromalitos
foi favorecida por uma camada de microrganismos na parte inferior dos
corpos d’ água, e os eventos vulcânicos e cinzas espalhadas. Este
material deu-nos uma oportunidade assustadora mas também fascinante para
investigar certos enigmas da biologia de alguns dos primeiros amniotas.
O estudo dos mesossauros apenas começou!
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